1º Dama do Morro Domina Coração de Mangueira
Dona Neuma, 1987
José Doval/Acervo O GLOBO

De JOSÉ CARLOS RÊGO

PORQUE, verdadeiramente em sua casa as portas não se fecham, em qualquer hora do dia ou da noite, a residência de D. Neuma Gonçalves da Silva pode ser considerada o coração da Mangueira. A qualquer hora da madrugada, uma batida na janela do quarto de D. Neuma pode significar que uma criança está passando mal e a mãe aflita veio pedir à dona da casa que lhe permita usar o telefone para chamar a ambulância.

A senhora que sentiu as dores do parto, sabe que aquela hora incerta da madrugada o melhor mesmo é dirigir-se à casa de casa de D. Neuma, pois lá poderá chegar melhor o socorro pedido à Casa da Mãe Pobre. A vitima de um mal súbito ou de uma bala perdida no complexo mundo de zinco da Mangueira, também encontrará a mão da solidariedade naquela casa “verde-rosa” da Rua Visconde de Niterói, na entrada do “Buraco Quente”.

Pelo amor que dedica ao Morro de Mangueira e em especial à Estação Primeira, escola de suas emoções, Dona Neuma foi apontada por todos os moradores, do “Pendura Saia” ao Santo Antônio, há 10 anos, como a Primeira Dama de Mangueira. No ano seguinte ao da escolha, os moradores de Mangueira não souberam como dizer a D. Neuma que ela seria substituída e até hoje o titulo ainda é seu.

Coração do Morro

Para D. Neuma, Mangueira não significa só a escola de samba. É a própria razão de sua vida. Centenas de moradores do morro têm na sua casa não só um teto sempre aberto para um momento de apertura, mas o centro de referência, que pode ir desde a resposta do emprêgo pedido ao recado da namorada do bairro distante, ou também do chamado inesperado para a assinatura de contrato da gravacão do samba que fêz secesso no terreiro. O cronista carnavalesco sabe que não pode “funcionar” sem o telefone de D. Neuma, onde êle marcará o contrato com o sambista a ser entrevistado.

O amor da Primeira Dama de Mangueira à sua “verde-rosa”, entretanto, é a sua consagração. Segundo a própria D. Neuma, êsse amor está “enraizado no coração e no próprio sangue”.

Pai Morreu Pela Escola

Seu pai, o famoso Saturnino Gonçalves, um dos fundadores dos primeiros ranchos, blocos (na época chamados cordões) e escolas-de-samba que viriam resultar na Estação Primeira de Mangueira, algumas horas antes de morrer, segundo depoimento da família, pedia à escola para formar sôbre a ponte de Mangueira “para que fôsse a última lembrança que levaria da vida”, como afirma D. Neuma. O amor ás côres da Estação Primeira — diz ela — foi a grande herança que meu pai nos deixou”.

A Casa Verde-Rosa

Em Mangueira, não é só o pavilhão da escola que é verde-rosa. A casa de D. Neuma também. Explica ela que é uma tradição de família, pois a residência de suas irmãs, igualmente, quando a “cozinha é verde a sala ou o quarto é rosa”

— E isso nós mantemos como ponto de honra da família. A própria casa em que nascemos, num lugar então conhecido como Largo do Sossêgo (porque saía muita briga), aqui mesmo em Mangueira, já era verde-rosa, côres usadas pelos blocos de Mestre Candinho, da Tia Tomázia, dos “Arengueiros” e da Unidos de Mangueira, que iriam se unificar, anos depois, para criar a Estação Primeira.

Ainda criança, D. Neuma assistiu aos primeiros ensaios das escolas de Mangueira, primeiramente na casa de Saint-Clair, depois na residência de “Biléco”, adiante nas imediações da casa do sambista Júlio, até que a Estação Primeira teve a sua primeira sede em 1935, na Travessa Lobão1, no “Buraco Quente”, onde hoje a escola ensaia tôda quinta-feira. Nesta época, desfilava na Ala Mirim, onde também estiveram sambistas famosas como Irene, Ruth, “Mocinha”, “Morena” e Minininha”.

Cartola e Carlos “Cachaça”

Das grandes alegrias que a sua escola já lhe deu, D. Neuma guarda com carinho a segunda colocação no concurso que apontou a Rainha de Mangueira, uma promoção do jornal “A Pátria”, onde ficou em 2.° lugar “com muita honra por que a primeira colocada era uma cabrocha e tanto” segundo sua afirmativa. Diz também, que não poderá se esquecer da festa de abertura da primeira “Feira de Amostras do Rio de Janeiro”, quando o conjunto de “Cartola”, do qual participavmn as cabrochas Creuza, Ruth e “Cecéia” e os passistas Nêgo, “Malandrinho” e “Preguiça” e ela própria, arrebatou o troféu “Cidade do Rio de Janeiro”, para a Mangueira.

Embora Estação Primeira, seja um celeiro de poetas, Dona Neuma diz que “não apareceu ainda quem pudesse superar Carlos “Cachaça” nos versos e “Cartola” na melodia. Formam êles uma dupla que é mais do que um patrimônio da Mangueira. As músicas “Samba na Floresta” e “Vale do São Francisco”, ambos, sambas de enrêdo e assinados pela dupla, foram os mais inspirados sambas já surgidos em nossos terreiros. Se os sambistas de hoje quisessem prestar uma homenagem ao glorioso passado da Mangueira, deveriam mandar erguer na subida do morro uma estátua para Carlos “Cachaça” e “Cartola”.

Em sua casa, além do mangueirenses, todo mundo é de samba. Seu espôso, Alcides Bernardino da Silva é um dos dirigentes da escola. Sua filha Márcia vem brilhando vários carnavais como porta-bandeira da Ala Mirim, ao lado de Robertinho. Eli, Elci e Edir cabrochas que tradicionalmente “balançam a Avenida” quando desfilam na Ala das Damas2.

  1. ERRATA! A primeira sede da agremiação foi instalada na Travessa Saião Lobato, número 7, no Buraco Quente. ↩︎
  2. RÊGO, José Carlos. “1º Dama do Morro Domina Coração de Mangueira”. ÚLTIMA HORA (RJ), n. 1.217. 13-1-64. 2º Caderno, p.6. ↩︎