1939/1948

A revista lançada pela Mangueira em 1998, ano comemorativo dos 70 anos de fundação da Escola, além de explicar o enredo daquele ano, “Chico Buarque da Mangueira” — também e principalmente — homenageia a data com diversos textos separados por períodos (todos serão publicados no blog). O texto do período entre 1939/1948 é dedicado a importância das mulheres na Escola, informando particularidades de várias dessas “Tias” ou “Donas”. Tia Miúda, Dona Zica, Dona Neuma, Verinha, Nininha Xoxoba, Leci Brandão são algumas delas. Antes de transcrever esse texto propriamente dito, publico trecho do livro “A vila olímpica da verde-e-rosa” de Maria Alice Rezende Gonçalves (Editora FGV, 2003), no qual a autora aborda esse mesmo tema: a importância e influência da mulher nas escolas de samba. Espero que gostem e compatilhem, pois assim estarão divulgando nosso samba e em particular, a Estação Primeira de Mangueira. Boa leitura.

Papel feminino no samba

O papel feminino — das “donas” ou “tias” — também aparece em todos os relatos sobre o cotidiano das escolas. Desde o início do século XX até as escolas atuais, as tias estão presentes nos depoimentos dos sambistas. Tia Amélia, mãe de Donga e cantora de modinhas, realizava na rua Aragão grandes reuniões de samba, porque, baiana como era, trouxe isso “no sangue”, escreve Moura (1983). Da fundação do G.R.E.S. da Portela participaram as “tias” d. Esther, d. Neném, d. Martinha, d. Vicentina etc., conhecidas boas cozinheiras e às vezes mães-de-santo. Suas casas eram pontos de encontro de sambistas, onde se realizavam feijoadas, o angu à baiana e a peixada, para seus freqüentadores. Outra “tia” importante na história da Portela foi Vicentina do Nascimento, filha de Napoleão José do Nascimento, cujo terreiro era conhecido por realizar reuniões de caxambu, organizadas por ela e Nazinho.

Vicentina acompanhou com o irmão, o famoso Natal, a fundação da Portela, em 11 de abril de 1923, e ajudou a fundar, em outubro de 1984, a escola de samba Tradição, após uma cisão na direção da escola. Sambista, conhecida por preparar a “melhor feijoada da cidade”, já inspirou sambas de diversos compositores, entre eles Paulinho da Viola, que em seu Pagode do Vavá refere-se ao “famoso feijão da Vicentina, que só quem é da Portela sabe que a coisa é divina”. Na fundação da Império Serrano, certas senhoras como d. Marta, mãe-de-santo conceituada na Serrinha e componente da ala das baianas desde 1947, e vovó Maria Joana Rezadeira, mãe-de-santo, jongueira, também integrante da ala das baianas, e outras que participaram da vida religiosa e lúdica da comunidade surgem como figuras de destaque na história da escola.

A publicação Mangueira 70 anos, editada pela própria escola, dedica um espaço à contribuição feminina. Em 1940, componentes da verde-e-rosa, entre os quais dona Neuma, se apresentaram no Cassino Atlântico, numa época em que não era comum sambistas se apresentarem na Zona Sul da cidade. Em 1943, a escola de samba, fundada por homens, formou sua comissão de frente com nove mulheres. Tia Miúda relata:

Eu me lembro muito bem até hoje. A escola queria mulatas para abrir o desfile e nos chamou para a comissão de frente. Eu, Neuma, suas irmãs e outras. Vestimos saia e blazer rosa. Naquela época nem se falava blazer, e sim costume. A blusa e o sapato eram verdes. Quem fez a roupa foi a Ivone Dória, mãe do falecido Carlinhos Dória, que mais tarde foi presidente da Mangueira. A Ivone morava perto da linha do trem, onde hoje é o viaduto. Naquela época, os responsáveis por saudar o público e apresentar a escola eram homens afamados e respeitados na escola ou benfeitores da agremiação. A função tinha grande importância. Tanto que, desde 1938, a comissão de frente já fazia parte do regulamento do desfile.

Participar da comissão de frente significou um avanço para as mulheres: era entrar num universo masculino, onde desfilavam os sambistas mais antigos da escola. Somente na década de 1980 a Mangueira adotou as inovações, já introduzidas por outras escolas na década anterior, convidando para a abertura do desfile pessoas notáveis, como artistas, atletas, intelectuais e sambistas fantasiados. Ativas na escola desde a sua fundação, às mulheres cabia as atividades de passistas, costureiras, cozinheiras. Na década de 1960 foi criado o departamento feminino, fundado por dona Neuma, que tinha como funções abrir o samba e receber os convidados e visitantes da verde-e-rosa.

Eu fui à Em Cima da Hora porque havia uma festa dos Destaques de Ouro e eu era a madrinha do grupo. Fiquei encantada com o departamento feminino, presidido pela Cilinha. Achei uma beleza. Eu mesma nem sabia o que era isso e perguntei. Elas me disseram que cabia às mulheres receber os convidados e abrir o samba. Foi aí que tive a idéia de fazer o mesmo na nossa Mangueira.

Diz dona Neuma. […]1

As mulheres conquistam seu lugar

A Estação Primeira de Mangueira voltou a ser campeã no carnaval de 1940, com o enredo Prantos, pretos e poetas. Em seguida, vieram a Mocidade Louca de São Cristóvão, a Azul e Branco, a União do Sampaio e a Portela. A comissão julgadora foi formada por Modestino Kanto, Francisco Guimarães Romano, Genhardt Luckman, Arlindo Cardoso e Lourival Dalier Pereira. Naquele ano, um fato marcou a História da verde-e-rosa: seus componentes, entre eles Dona Neuma e Cartola, participaram de um show de samba no refinado Cassino Atlântico, por iniciativa de Sílvio Caldas, que deu à escola o seu primeiro surdo. Fato notável na época, já que não era comum sambistas se apresentarem na Zona Sul da cidade.

Antes disso, em 1939, a verde-e-rosa fôra a vice-campeã, com enredo No jardim. O prefeito do Distrito Federal Pedro Ernesto foi o homenageado pela Mangueira em 1941, quando a escola ficou em segundo lugar. A homenagem mostrou a gratidão dos mangueirenses a Pedro Ernesto que, quando foi visitar o morro em 20 de janeiro de 1935, perguntou qual maior necessidade da comunidade. A resposta? Uma escola de Primeiro Grau. Dito e feito. No local em que os mangueirenses indicaram ao prefeito, no Buraco Quente, foi construida a Escola Humberto de Campos. No desfile de 1942, o clima da Segunda Guerra Mundial chegava às escolas de samba: a verde-e-rosa trouxe o enredo A vitória do samba nas Américas, que lhe valeu um terceiro lugar.

Apoio oficial. Compositor Cartola (com violão, ao centro) se apresenta com integrantes da Mangueira, na cerimônia de inauguração da Escola Humberto de Campos, a primeira numa favela carioca, durante o governo Pedro Ernesto: prefeito, que oficializou os desfiles em 1935, foi pioneiro na aproximação com as escolas de samba. Foto: 1936/Reprodução
Apoio oficial. Compositor Cartola (com violão, ao centro) e seu Júlio (primeiro à esquerda) se apresentam com integrantes da Mangueira, na cerimônia de inauguração da Escola Humberto de Campos, a primeira numa favela carioca, durante o governo Pedro Ernesto, prefeito, que oficializou os desfiles em 1935. Foi pioneiro na aproximação com as escolas de samba.
Foto: 1936/Reprodução

A aceitação social dos sambistas foi abordada pela Mangueira em 1943, com o enredo Samba no palácio Itamaraty. Já em 1944, a Estação Primeira foi novamente vice mas não se tem notícia de qual o seu enredo. Nossa história foi tema em 1945 (vice-campeã) e Carnaval da vitória, em 1946, glorificou os feitos dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, que acabara no ano anterior.

A primeira grande polêmica no desfile surgiu no carnaval de 1948, pois o resultado oficial aponta como campeã a Império Serrano. Até hoje, meio século depois, uma controvérsia faz com que a verde-e-rosa se sinta a vencedora de direito, contabilizando aquele desfile como mais um título seu. De acordo com o livro Memória do carnaval (edição Riotur), consta que na ocasião o diretor do Departamento de Turismo teria alterado o resultado final, que daria a vitória à Mangueira, com a Portela em segundo. Mesmo diante da forte pressão, o locutor oficial, Heron Domingues, leu o veredito da comissão, que declarava campeã a Estação Primeira.

Essa confusão encerrou uma fase carnavalesca de clima tenso, provocado pelo corte da tradicional subvenção da Prefeitura à União Geral das Escolas de Samba, á qual a Mangueira era filiada. A medida foi tomada em represália ao apoio do jornal comunista Tribuna Popular àquela entidade. Assim, apenas a Federação das Escolas de Samba recebeu verba para distribuir entre agremiações que a integravam.

Resultados de carnavais à parte, a segunda década da Mangueira seria marcada pelo crescimento da participação das mulheres em funções de destaque. A escola fundada por homens viveu sua primeira década sob o comando de patriarcas como Cartola, que escolheu suas cores; Saturnino Gonçalves, o primeiro presidente, e Carlos Cachaça, autor de sambas inesquecíveis. Mas logo as mulheres do Morro de Mangueira mostrariam que, sem elas, a história da verde-e-rosa não seria a mesma.

Tia Miúda uma das pioneiras de 1943
Tia Miúda uma das pioneiras de 1943
Foto: Revista Mangueira 70 Anos
Tia Míúda

Que o diga a dona de casa Noêmia de Assis, de 85 anos. Ou melhor, a Tia Miúda, chamada assim desde infância porque começou a andar muito cedo. Ao lado de nove mulheres, inclusive Dona Neuma e suas irmãs, ela desfilou na comissão de frente em 1943. Até então, o espaço era exclusividade dos homens:

Eu me lembro muito bem até hoje. A escola queria mulatas para abrir o desfile e nos chamou para a comissão de frente. Eu, Neuma, suas irmãs e outras moças. Vestimos saia e blazer rosa. Naquela época nem se falava blazer, e sim costume. A blusa e o sapato eram verdes. Quem fez a roupa foi a Ivone Dória, mãe do falecido Carlinhos Dória, que mais tarde foi presidente da Mangueira. A Ivone morava perto da linha do trem, onde hoje é o Viaduto.

Naquela época, os responsáveis por saudar o público e apresentar a escola eram homens afamados e respeitados na escola ou benfeitores da agremiação. A função tinha grande importância. Tanto que, desde 1938, a comissão de frente já fazia parte do regulamento do desfile.”

Só em 1963 a Mangueira teve uma Comissão de Frente apenas com mulheres. Nela desfilaram 15 moças do morro, entre elas Chininha e Ceci, filhas de Dona Neuma, e Dina, irmã do atual Presidente Elmo José dos Santos, que faziam parte da Ala das Impossíveis.

Hoje Tia Miúda mora em Jacarepaguá, mas não sai da Mangueira. Coisa de quem se orgulha de trazer a folia nas veias:

Meu pai, Augusto, foi fundador do célebre rancho Ameno Resedá!2

Tia Miúda desfilou também na Ala das baianas, foi acessora da diretoria na gestão de Djalma Santos, é conselheira nata da Velha Guarda e sócia remida da Estação Primeira. Seu cargo hoje na escola é o de Baluarte, palavra que bem define aqueles que se dão de corpo e alma na defesa da coletividade.

Aproveitando essa parte do texto da Revista Mangueira 70 anos, aonde se lê sobre Tia Miúda, transcrevo outro texto, esse de Nilcemar Nogueira, publicado na Revista A Voz do Morro, também sobre Tia Miúda:

Na Mangueira quase ninguém conhece Noêmia de Assis, mas não há quem não saiba quem é D. Miúda, embora Noêmia de Assis e D. Miúda sejam a mesma pessoa. D. Miúda, hoje com 68 anos, três filhos, cinco netos e um bisneto, começou a andar muito pequinininha, aos sete meses. Daí o apelido de Miúda.
Há mais de quarenta anos desfila na Mangueira, desde aquela primeira vez, há muito tempo, quando saiu na Comissão de Frente. Já foi Rainha das Frutas, Rainha Negra, componente da Ala das Baianas e ultimamente sai como Diretora. Foi Assessora da Diretoria na gestão Djalma Santos, fez parte da Diretoria da Velha Guarda, da qual é conselheira nesta, e guarda até hoje a carta-convite do Presidente que lhe ofereceu um cargo de Diretora.
É cozinheira titular na cozinha da Escola e faz gratuitamente o sopão que a cantora Alcione oferece todos os domingos para as crianças do Morro.
D. Miúda acha que os carnavais de hoje são cem por cento melhores que os de antigamente, pela maior organização, pela facilidade de encontrar os materiais que produzem o visual brilhante das Escolas de agora. As fantasias de baiana, por exemplo, confeccionadas em conjunto por uma só costureira são todas iguais, o que não acontecia antigamente, pois as de melhores condições conseguiam roupas de melhor acabamento.
O maior sonho de vida de D. Miúda era ver uma Ala de Baiana na Mirim desfilando na passarela, pois tem certeza de que seria um grande show.3

A comissão de frente da Mangueira de que Tia Miúda fez parte teve uma composição tradicional até a década de 70, quando viveu dois momentos marcantes. Em 1977, foi composta por Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Cartola e Juvenal Lopes, entre outros, apresentando-se garbosamente de paletó, gravata borboleta e chapéu para saudar o público. No ano seguinte, eles surgiram coroados de Imperadores do Samba, dentro do enredo Dos carroceiros do Imperador ao Palácio do Samba, homenagem ao cinqüentenário da escola.

Em 1978, os Imperadores do Samba, comissão de frente do desfile do cinquentenário
Em 1978, os Imperadores do Samba, comissão de frente do desfile do cinquentenário
Foto: Revista Mangueira 70 Anos

Como se percebe, a comissão de frente da escola vivia uma fase de transição: seus componentes eram sambistas antigos, mas suas fantasias já se adequavam ao enredo. Áquela altura, esse processo já se consolidara em outras agremiações, com a Velha Guarda afastada da comissão de frente. Mas isso não acontecia na Mangueira.

Em 1979, com o enredo Avatar, e a selva se transformou em ouro, sobre a cultura cacaueira no Brasil, a tendência se confirmaria. Abrindo o desfile da Mangueira estavam os antigos sambistas, cabelos grisalhos sob chapéus de palha, à moda dos coronéis do Ciclo do Cacau no Sul da Bahia, celebrados pela inventiva de Jorge Amado.

Somente cinco anos depois a Mangueira iria aderir definitivamente à modernização, escalando para abrir seu desfile casais com fantasias inspiradas na Bélle Èpoque — período tão caro ao compositor João de Barro, homenageado com o enredo Yes, nós temos Braguinha. Daí, ninguém ter-se espantado quando em 1987 a Mangueira convidou notáveis para abrir seu desfile em homenagem a Carlos Drummond de Andrade: lá estavam Chico Buarque de Holanda, Hermínio Bello de Carvalho e Affonso Romano de Santana, admiradores do poeta. As mudanças foram bem aceitas pelo júri oficial: tanto em 1984 quanto em 1987 a Mangueira sagrou-se campeã. Em 1988, mais convidados à frente da Estação Primeira, entre eles a repórter da Rede Globo Glória Maria, os campeões olímpicos de atletismo João do Pulo e Ademar Ferreira da Silva e o ator Milton Gonçalves. A idéia foi mostrar logo no início do desfile negros de sucesso, pois o enredo era Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão, sobre o centenário da Abolição da Escravatura. Naquele carnaval, o tricampeonato escapou da Mangueira apenas por um ponto. Mas a escola honrou suas raízes e tradições, com emocionante apresentação.

Nininha Xoxoba com o Parangole, 1965
Nininha Xoxoba com o Parangole, 1965
Foto: Andreas Valentin
Nininha Xoxoba

Se nos anos 40 as mulheres puderam participar sem problemas dá comissão de frente da Estação Primeira, tempos antes uma mangueirense precisou de muita ousadia para mostrar aos bambas do samba que, pelo menos na verde-e-rosa, elas mereciam e teriam papel de destaque. Trata-se de Sebastiana Teixeira de Almeida, a Nininha Xoxoba, que foi passista e, durante 16 anos, porta-bandeira. Nascida em 1919 e falecida uma semana antes do carnaval de 1966, Nininha já desfilava de baiana nos blocos do morro. Gostava tanto de dançar, que ia aos terreiros de umbanda só para isso. Outro traço de sua personalidade era a coragem para superar as restrições impostas às mulheres naquela época. Melhor mesmo é lembrar o depoimento de Nininha ao jornalista José Carlos Rêgo, registrado no livro Dança do samba, exercício do prazer:

Eu era meio abusada e em 1934, quando a comitiva da Mangueira chegou à Praça Onze, o pessoal cantava um batuque assim: A batucada é pra homem só/Pra homem só/A batucada é pra homem só. Entrei na roda e derrubei um parceiro que se exibia. Foi a conta: o malandro escalou (abriu) a navalha e partiu para dentro de mim. O Cartola veio em meu socorro.”

Seu apelido surgiu do alegre grito de guerra que entoava nos anos 60, quando, mesmo sozinha, sambava na quadra assim que os ritmistas começavam a tocar. Ela deixava o corpo cair e, quando se erguia, dizia com euforia: “Noxô-ba, xoxô-ba, xoxô”. Além disso, conseguia a proeza de mexer apenas uma das nádegas, deixando a outra parada.

Departamento Feminino

As mulheres mangueirenses foram presença ativa na escola desde a fundação, costurando fantasias, fazendo comida nas festas e ajudando a direção de harmonia durante os desfiles. Mas o Departamento Feminino só seria criado na década de 60. Sua fundadora, Dona Neuma, não se lembra exatamente quando foi. Consultar os arquivos oficiais da escola também não tira as dúvidas, já que as reuniões do grupo não eram registradas em ata. Mas era tudo muito organizado, com eleição para todos os cargos, de presidente, vice, duas secretárias e duas tesoureiras.

No entanto, uma coisa é garantida: o Departamento Feminino da verde-e-rosa surgiu após 1962, porque Dona Neuma tem certeza de que importou a idéia da Em Cima da Hora, fundada naquele ano:

Eu fui na Em Cima da Hora porque havia uma festa dos Destaques de Ouro e eu era a madrinha do grupo. Fiquei encantada com o Departamento Feminino, presidido pela Cilinha. Achei uma beleza. Eu mesma nem sabia o que era isso e perguntei. Elas me disseram que cabia às mulheres receber os convidados e abrir o samba. Foi aí que tive a idéia de fazer o mesmo na nossa Mangueira.

Deolinda e Nair Pequeno

Mais importante que a data precisa é a atuação das mulheres da Mangueira, que teve em Deolinda Conceição, primeira mulher de Cartola, e Nair Pequena dois exemplos. Deolinda é descrita por biógrafos de Cartola como uma mulher forte, com perfil para, ainda nos anos 40, não se intimidar diante de ninguém. Quem confessa isso em apenas sete palavras é o próprio compositor, em depoimento ao pesquisador Roberto Moura, no livro Cartola, todo tempo que eu viver: “Deolinda era mais forte do que eu.”

Segundo Roberto Moura, que tomou vários depoimentos do poeta da Mangueira para seu livro, Deolinda foi líder da Ala das Pastoras e muito ajudou Cartola em seu trabalho junto à Mangueira. Naquela época as pastoras eram da maior importância, encarregadas, entre outras coisas, de cantar as partes do samba-enredo mais adequadas às vozes femininas.

Tão forte quando Deolinda foi Nair Pequena. Dona Neuma, ainda menina, pedia a bênção às duas, que costumavam ficar quase o dia inteiro na antiga sede da verde-e-rosa, na Travessa Saião Lobato, no Buraco Quente. Nair é protagonista de um dos episódios lembrados com mais emoção pelos mangueirenses. No carnaval de 1970, quando a escola se preparava para entrar na Avenida na terça-feira, para o desfile que reunia as mais bem classificadas no ano anterior, Nair sucumbiu a um ataque cardíaco. Quem a conheceu garante que ela não resistiu a tanta emoção. Mas, afinal, ela sempre dissera que só morreria feliz se morresse no carnaval.

Os exemplos de Nair, Deolinda e de outras deram frutos no Departamento Feminino, comandado por Nenete e Márcia da Silva Machado, a Guezinha. Sem muitas diferenças dos anos 60 para cá. A exemplo do que faziam as pioneiras, elas e suas companheiras têm duas funções básicas: abrir o samba e receber os convidados e visitantes da verde-e-rosa. Como têm a função de fazer as honras da casa, a aparência não é um mero detalhe. A cada ensaio, elas combinam qual será a cor da blusa e da saia, que nunca fica muito acima do joelho: verde, rosa ou branca. Nos intervalos entre um samba e outro, sentam-se perto da entrada, sempre atentas aos visitantes. E mantêm o sorriso após muitas horas de trabalho, pois ajudam a preparar as festas, cozinhando, limpando a quadra e arrumando as mesas. Além disso, acompanham compositores e diretores de harmonia onde quer que eles vão divulgar o samba da Mangueira.

No desfile, sua atuação também é fundamental. Parte delas sai na Ala das Baianas e parte desfila como diretora, reforçando a equipe de harmonia. Ajudam as baianas mais antigas a se aprontarem, uma tarefa fundamental, já que, se a escola corre o risco de perder ponto se não estiver na concentração na hora marcada, em hipótese alguma pode deixar para trás suas matriarcas. Portanto, uma atuação marcante desde o tempo em que o Departamento Feminino foi oficializado. No principio, eram dez diretoras, 15 recepcionistas e pouco dinheiro. Elas mesmas dizem que “a roupa era pobrezinha mas havia o extremo cuidado de combinar as cores nas variações do verde, rosa e branco”. A confecção das fantasias é outra tarefa que durante muitos anos coube às mulheres da Mangueira. Mas a função foi sendo passada progressivamente a ateliês de profissionais, escolhidos pelos presidentes de ala ou carnavalescos. Mesmo assim, ainda na década de 80, quando o desfile das escolas de samba já se transformara num espetáculo feito por especialistas, era comum ver mulheres do morro virando as noites para preparar a tempo centenas de fantasias. Vigílias recompensadas pelas vitórias sobre adversárias mais bem estruturadas, como no carnaval de 1986, quando a Mangueira foi campeã com o enredo Caymmi mostra ao mundo o que a Bahia e a Mangueira tem, superando escolas antes consideradas favoritas.

Em fase mais atual, apenas a confecção das fantasias das baianas e da Ala das Crianças ficou a cargo das costureiras do morro, sendo centralizada mais tarde no barracão da Mangueira. Mudança imposta pela disputa acirrada pelo título de campeã, já que as outras escolas se sofisticam cada vez mais.

Baianas

Mas hoje as baianas desfilam com fantasias iguais, confeccionadas pelo mesmo grupo, até os anos 60 havia diferentes figurinos. Segundo o jornalista Roberto Paulino, ex-presidente da Estação Primeira, elas saíam como baianas granfinas, baianas ricas e sob outras denominações. Ou seja, as mulheres saíam vestidas de baiana mas não como uma ala de baianas, com o mesmo figurino.

No desfile de 1959, ele achara a Mangueira fraca, lamentando o reduzido número de baianas tradicionais, senhoras da comunidade. Ouviu depois de Dona Neuma a explicação:

Elas se afastaram, estão desgostosas, não têm merecido a consideração devida. Muitas não têm dinheiro. Estão desmotivadas.

Surgiu imediatamente a idéia de unificar as baianas na Mangueira numa única ala. Paulino fez uma relação das veteranas e mandou carta para cada uma delas, convocando-as a voltar à verde-e-rosa. A escola daria o material e caberia a elas a confecção. O chamado foi atendido pronta e alegremente. Naquele primeiro ano foram distribuídas 75 fantasias, divididas por macro-regiões da Mangueira em três grupos de 25: Pindura Saia, Buraco Quente e Candelária. Em 1962, subiram para 200, um sucesso no desfile das escolas. A partir daí, fantasias passaram a ser cada vez mais uniformizadas. Mas até a década de 70, ainda era comum ver algumas baianas com fantasias diferentes das vestidas pelo resto do grupo. Em geral, eram mais velhas e se destacavam pelo figurino cheios de bordados de estrasse, lantejoulas ou paetês, aplicados por elas próprias.

Série Mangueira - Porta-bandeira. Residência de Dona Neuma (Velha Guarda da Mangueira), Morro da Mangueira 1969 circa
Série Mangueira. Residência de Dona Neuma (Velha Guarda da Mangueira), Morro da Mangueira, 1969 circa
Foto: Maureen Bisilliat/Instituto Moreira Salles

A unificação do figurino ajudou a Mangueira a se modernizar, mas o tempo em que as baianas disputavam para ver quem sairia com a fantasia mais bonita é lembrado com romantismo pelos velhos mangueirenses. Havia um grande mistério e curiosidade para saber como se apresentariam, por exemplo, Nair Pequena, Nair Brinquinho, Nair Grande, Hilda do Tinguinha e a Guiomar do Chico Porrão. Elas levavam meses aproveitando faixas de tecidos, bordando, pregando lantejoulas, emendando rendas, franzindo babados e unindo fitas. Um segredo guardado a sete chaves.

Zinha com sua fantasia para o Carnaval de 75, Nega Fulô
Ilazir, que também é Zinha, uma senhora mulata, que também é essa Nêga Fulô
Foto: Diário de Notícias, 5-2-75
Zinha

Falar de mulher mangueirense é falar também de vaidade, coisa que Ilazir Miranda, braço-direito de Dona Neuma no Departamento Feminino, conhecia muito bem. Ilazir, ou melhor, Zinha, foi durante muitos anos um dos principais destaques da verde-e-rosa, no tempo em que a função exigia muita força de vontade. A começar pela confecção da fantasia, tarefa que ela fazia questão de assumir, em vez de passar a uma equipe de profissionais.

Mais garra ainda era necessária para desfilar sem perder a pose, já que, no tempo dela, destaque vinha no chão, vestida de fantasias pesadas. Só para ilustrar: a de 1975 tinha 30 quilos e consumiu 11 metros de acetato, 18 metros de renda e 10 metros de paetê! Tudo isso para brilhar como a Nega Fulô, um dos personagens lembrados pelo enredo Imagens Poéticas de Jorge de Lima.

Zinha não ficava só na pose. Era líder do Destaque de Ouro, do qual faziam parte Cilinha e Mariazinha, da Em Cima da Hora; Ivanói Ferreira da Silva, da Imperatriz Leopoldinense, e Isabel Valença, do Salgueiro. A madrinha era Dona Neuma e vivia organizando festas em todas as quadras cariocas.

Leci Brandão

A compositora Leci Brandão não tem dúvida de que, na Mangueira, palavra de mulher vale muito. Segundo ela, uma prova disso é que, toda vez que há polêmicas sobre a verde-e-rosa, Dona Zica e Dona Neuma aparecem nos jornais, rádios e emissoras de televisão dando a sua opinião. Com isso, afirma a compositora, elas influenciam a opinião pública e os próprios componentes da Mangueira: “Elas são a cara da escola!”

Leci foi mesmo uma pioneira, a primeira mulher a integrar a Ala de Compositores, a convite de José Branco, o tesoureiro. Isso em 1971, quando foi aceita simbolicamente, estreando na Avenida no ano seguinte. Segundo ela, houve quem a olhasse com uma cara de “O-que-é-que-esta-menina-veio-fazer-aqui?” mas as resistências iniciais foram superadas com facilidade. O estágio por que teve que passar antes de se integrar definitivamente ao grupo não foi uma questão de machismo, mas uma praxe a ser obedecida: os compositores novos, homens ou mulheres, não podiam entrar na ala logo que chegavam.

Para ser admitida como igual e respeitada num meio até então restrito aos homens, Leci deixou bem claro seu amor pela escola, que aprendeu a gostar com a mãe, Lecy, e a avó, Ormezinda, que foram baianas da verde-e-rosa. Assim que a sambista falou de sua intenção, o então presidente da ala, José Brogogério, pediu que ela fizesse uma carta explicando seus motivos. Foi quando entrou em cena a sua paixão pela verde-e-rosa:

Escrevi que queria aprender com os compositores da Mangueira. E aprendi muito. Se hoje eu sei versar (improvisar) no partido alto, agradeço à Ala de Compositores da escola. Também aprendi a tocar pandeiro e hoje posso fazer isso nos meus shows. Para mim foi o mesmo que cursar uma universidade.

Leci Brandão chegou à final da disputa de samba-enredo da Mangueira nos carnavais de 1975 (Imagens poéticas de Jorge de Lima), 1980 (Coisas nossas), 1985 (Ô abram alas que eu quero passar), 1987 (O reino das palavras) e 1998 (Chico Buarque da Mangueira). Não ganhou em nenhuma dessas vezes, mas viveu um grande momento na verde-e-rosa ao ser a única mulher a integrar a comissão de frente em 1985, quando a escola homenageou Chiquinha Gonzaga. A idéia era que Leci, uma pioneira, lembrasse Chiquinha, outra pioneira da folia carioca.

Verinha

A final de samba-enredo de 1987 foi aguardada com grande expectativa pelas mangueirenses, já que duas mulheres estavam classificadas. Ou seja, era grande a possibilidade de, pela primeira vez, a verde-e-rosa cantar na Avenida um samba feito por mulher. Não deu outra. Venceu Verinha, em parceria com Rody e Bira do Ponto. No refrão, o trio lembrou personagens dos poemas de Drummond, colocando Dom Quixote, Zé Pereira e Charlie Chaplin “no embalo da Mangueira.”

Mas o melhor ainda estava por vir. Se já ficara feliz por ser a primeira mulher a assinar um samba-enredo da Mangueira, Verinha ainda teve a emoção de ver a verde-e-rosa campeã de 1987. A compositora venceu mais duas vezes o concurso de samba-enredo da escola: em 1993, em parceria com Eraldo Caê, Dirceu, Prêto, Fernando de Lima, Ney Mattos, Bira do Ponto e Gustavo (Dessa fruta eu como até o caroço) e em 1995, com Rody, Paulinho Carvalho e Fernando de Lima (A esmeralda do Atlântico).

Aproveitando que no trecho do texto acima (revista Mangueira 70 anos), são citadas as duas primeiras compositoras da Estação Primeira: Leci Brandão e Verinha, transcrevo, no trecho abaixo, outro texto, esse publicado no blog do saudoso Seu Raymundo, sobre o mesmo assunto.

VERINHA, OU LECY?

Alguns dizem que foi a Verinha, Outros, que foi a Leci Brandão.

Para esclarecer este fato, fiz uma pesquisa e conversei com as pessoas que estiveram diretamente envolvidas neste episódio e as informações obtidas, estão a seguir:

Ainda não havia sido inaugurado o Palácio da Samba e em uma reunião da Ala dos Compositores realizada no ano de 1972, na sede da Travessa Sayão Lobato, o compositor Zé Branco levou ao conhecimento do presidente da ala José Narciso Teixeira (Brogogério), que num bloco carnavalesco em Realengo, existia uma garota que além de ser uma boa cantora, era compositora e compunha muito bem, sendo vencedora de diversos sambas enredos para os desfiles de carnaval do bloco e que o nome dela era, “Leci Brandão”

Em conversa com Brogogério, ele me disse:

“- Nesta época, eu possuía uma filosofia, quando me diziam que existia um compositor que era muito bom, fosse ele de Niterói, Caxias, São João de Meriti ou Miracema enfim, de qualquer lugar eu falava: – Traga ele pra nós! Isso aconteceu com Tolito, Nilton Russo e Jajá, todos eles vencedores.

Para que a futura componente não ficasse numa posição desconfortável, perguntei aos demais compositores se conheciam alguma compositora que morasse no morro, então o Batista falou, que existia uma menina compositora e que era parceira dele e seu nome era Verinha e eu de imediato lhe falei: – Traga ela também!”

Portanto, as duas foram admitidas na Ala dos Compositores, no mesmo dia. Esta confirmação foi feita a mim, Raymundo de Castro, pelo próprio Presidente da Ala dos Compositores na época, o Baluarte Brogogério e confirmado pelo compositor e Baluarte, Moacyr da Silva, que também participou da reunião em que foram admitidas.4

Dona Neuma

Pioneirismo marca também a trajetória de Neuma Gonçalves da Silva, que nasceu em 8 de maio de 1922 em Madureira, bairro do Império Serrano e da Portela, mas tornou-se uma das marcas registradas da Mangueira. Sua participação nos desfiles precede à criação da Mangueira: “Desfilei no Bloco do Mestre Candinho, fantasiada de girassol. Meu grupo representava a primavera.”

Dona Neuma foi morar no dia 4 de novembro de 1933 na casa em que vive até hoje, na Rua Visconde de Niterói. Arranjada por Cartola, a casa ganhou mais um andar, passou por várias reformas e, por sua localização em rua asfaltada e servida por linhas de ônibus, espécie de fronteira entre o morro e o resto da cidade, servia como sala de visitas já na década de 40, quando era raro pessoas de classe média se chegarem a escolas de samba.

Ou seja, ajudava a fazer a ligação do morro com o Rio, contribuindo para formar a enorme torcida da Mangueira, com adeptos em todo o Brasil.

Antes da construção do Palácio do Samba na década de 70, a casa de Dona Neuma era o ponto de partida de onde políticos, artistas e demais interessados saíam em romaria para conhecer a Mangueira. Foi assim na campanha presidencial de 1955, quando Juscelino Kubitschek foi pedir votos no morro, reduto de muitos mineiros.

Juscelino percorreu vielas, abraçou os moradores e até emprestou um lenço de linho, coisa fina, para uma criança assoar o nariz. Depois, guardou no bolso. Beleléu (Manoel Pereira, presidente da escola na época) apostou uma caixa de cerveja comigo que ele jogaria o lenço fora. Não deu outra. Bastou ele virar a esquina para ir embora. Mas Beleléu guardou o lenço de lembrança.” — ri ela gostosamente.

Mas a diplomacia de Dona Neuma e da Mangueira não deixaram que o episódio interferisse no relacionamento da verde-e-rosa com Juscelino. Tanto que, em 1981, a escola o homenageou com o enredo De Nonô a JK, lembrado pelo samba de Jurandir, Comprido e Arroz, que o trata de “o grande presidente, popular, imortalizado na História como chefe da nação.”

DESASTRES FERROVIÁRIOS - GB (CHOQUE DE TREM EM MANGUEIRA 8/5/58)
A foto tirada de dentro do primeiro carro do UA-68, mostra, além dos estragos sofridos pelo mesmo, a intensidade da penetração do primeiro carro do UA-71. Nêle pereceram dezenas de pessoas.
Foto: Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
DESASTRES FERROVIÁRIOS – GB (CHOQUE DE TREM EM MANGUEIRA 8/5/58)
A foto tirada de dentro do primeiro carro do UA-68, mostra, além dos estragos sofridos pelo mesmo, a intensidade da penetração do primeiro carro do UA-71. Nêle pereceram dezenas de pessoas.
Foto: Fundo Correio da Manhã

A casa de Dona Neuma foi também quartel-general do atendimento aos feridos num acidente de trem durante a gestão do então prefeito Negrão de Lima. Ele, que comandava o movimento de socorro às vítimas, ficou espantado ao saber que Mangueira não tinha uma única linha telefônica. Negrão logo providenciaria uma, para a casa de Dona Neuma, onde a um só tempo o morro começava e a cidade acabava. Presente mais do que bem-vindo, útil para todo o morro. Durante muito tempo, esse telefone era o único de fácil acesso para a maioria dos moradores. Na casa de Dona Neuma aflitos iam telefonar para providenciar o atendimento às mulheres já em trabalho de parto. Como nem sempre dava tempo de chegar até a maternidade, muitas crianças nasciam lá mesmo, tendo ela como ajudante de parteira. Resultado, Dona Neuma já perdeu a conta dos afilhados que ganhou. “As assistentes sociais dos diversos hospitais públicos tinham meu telefone nos seus caderninhos e até na Central do Brasil escreveram o número na parede.” — revela.

Diplomata e gentil com quem se interessa em conhecer a Mangueira, Dona Neuma também pode deixar tudo isso de lado e responder à altura a quando o convidado não corresponde à gentileza. Foi assim na visita do presidente americano Bill Clinton, em outubro do ano passado. Irritada com exigências da segurança do presidente (como a interrupção do tráfego de trens durante quatro horas e uma lista com nome e sobrenome dos moradores que participariam da solenidade na Vila Olímpica), ela não pensou duas vezes: “Diz a ele que é melhor ficar em casa!”

Cartola e Zica no Zicartola
Cartola e Zica no Zicartola
Foto: Correio da Manhã, 16-3-65
Dona Zica

Se Dona Neuma é a diplomata da Mangueira, sua vizinha Euzébia Silva de Oliveira, a Dona Zica, contribuiu para que a verde-e-rosa tivesse prestígo entre intelectuais e artistas, freqüentadores assíduos do seu restaurante Zicartola5. Eles iam atraídos pela poesia de Cartola mas também pelo tempero de Dona Zica. Antes de formarem o par perfeito do samba carioca, ela e Cartola percorreram caminhos distantes, conforme contou o poeta a Roberto Moura, em Cartola, todo tempo que eu viver:

Conheço Zica desde criança, bem como sua mãe e toda a sua família. Nossos primeiros contatos foram em 1919, quando eu tinha 11 anos e ela apenas 6. Ambos gostávamos de samba, que tinha em Mangueira uma de suas sucursais. Crescemos e cada um tomou o seu rumo. Zica se casou e eu, que sempre desejei a liberdade, vivi durante 22 anos com Deolinda, outra sambista da Mangueira. Mas o destino fez com que nossos caminhos se unissem novamente.”

O reencontro se deu em 1951, quando ele tinha 43 anos e ela, 38. Com Zica, Cartola se reergueu após uma fase adversa: tinha morado na Baixada Fluminense, não fizera sucesso e adoecera. Foi ela que teve a idéia de, em fins dos anos 50, procurar o Diretor do Departamento de Turismo da Guanabara, Mário Saladini, para pedir ajuda. Numa festa em Mangueira um pouco antes, Cartola conhecera Saladini, que se pôs à disposição do poeta para o que fosse necessário. Mas ele era tímido. Não tinha jeito de pedir.

Mas Zica tinha e, após o encontro dela com Saladini, ficou combinado que o casal ocuparia, como zeladores, parte de um prédio na Rua dos Andradas, sede da Associação das Escolas de Samba. Já no novo endereço, Zica começou a fornecer marmitas para motoristas da Praça Mauá, graças a seu conhecimento com um trocador de ônibus, chamado Mangueirinha. Em pouco tempo, já tinha tantos fregueses que chegou a recusar novos pedidos.

Para Cartola, a mudança também não foi só de endereço. Estudantes, artistas e músicos começavam a aparecer para ouvir suas composições. Chegavam ao fim do dia para tocar violão e conversar com o poeta. Era o embrião do Zicartola, casa de samba que viria a funcionar em 1963.

Como se não bastassem a comida de Zica e a música de Cartola as idéias políticas da época faziam crescer o interesse de intelectuais pelo samba. Inspirando-se no Movimento de Cultura Popular, fundado em Pernambuco durante o Governo Miguel Arraes, com o lema “Educar para libertar”, a União Nacional dos Estudantes (UNE) criou o Centro Popular de Cultura (CPC), que estimulou o encontro de jovens universitários com sambistas.

Foi a partir de uma conversa dos frequentadores com Zica (sempre ela) que surgiu a idéia de aprimorar os encontros na Rua dos Andradas. Liderado por Eugênio Agostini, um grupo conseguiu então arrecadar trezentos mil cruzeiros, empregados no aluguel, reforma e instalações do famoso restaurante da Rua da Carioca 53, ao lado do Cinema Íris.

A casa abriu com sucesso, revelando ao grande público mangueirenses ilustres como Clementina de Jesus e Nelson Cavaquinho. Num encontro com Carlinhos Lyra, ainda em 1963, na casa do físico e compositor Nelson Lins e Barros, Cartola mostrou suas composições no violão, ficando conhecido entre os adeptos da Bossa Nova. Cacá Diegues, Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes, Chico de Assis e Leon Hirszman também freqüentavam o Zicartola, que virara marco e moda.

Mas a revolução de 1964, que obrigou muitos freqüentadores a fugirem, as dívidas e o cansaço do casal acabaram levando a casa a fechar as portas. Apesar dos percalços a ponte entre a Mangueira e os intelectuais estava feita, resultando nos anos 70 em livros e teses de mestrado sobre a verde-e-rosa.

Chiquinha Gonzaga

A Mangueira, marcando seu pioneirismo fez afinal em 1985 pela primeira vez um enredo em homenagem a uma mulher: a escolhida foi ninguém menos que Chiquinha Gonzaga, tão pioneira quanto Dona Zica, Dona Neuma, Tia Miúda e Nininha. Naquele ano, a verde-e-rosa não foi campeã mas teve o mérito de chamar a atenção do país para uma mulher a quem o carnaval carioca deve muito, conforme deixou claro a justificativa do enredo Ô abram alas que eu quero passar, da pesquisadora Edinha Diniz, autora do livro Chiquinha Gonzaga, uma história de vida.

“Maior vulto feminino na História da Música Popular Brasileira e uma das grandes expressões da luta pelas liberdades no país, Chiquinha Gonzaga (1847 – 1935) pagou caro pela sua ousadia e seu pioneirismo, principalmente com o esquecimento. Por isso, após seis anos de pesquisa para resgatar sua memória, parecia-me fundamental transformar esse trabalho em enredo de escola de samba, por entender que esta era a fórmula mais legitima de narrar uma história que tem como protagonista o povo basileiro e a sua cultura.”

“Em fevereiro de 1889, usava-se fantasia e máscara para dançar nos salões, ao som da polca, tango, habanera, quadrilha, valsa e mazurca. O povo se divertia em cordões. No bairro do Andaraí o cordão Rosa de Ouro ensaiava. Ao ouvir os ensaios, Chiquinha Gonzaga, vizinha do cordão, senta-se ao piano e compõe: ‘Ô abre alas que eu quero passar’. Era a primeira vez que um compositor escrevia música para aquela festa de rua.”

Apesar da empolgação e dos belos versos de Jurandyr, Hélio Turco e Darcy, autores do samba-enredo daquele ano, 1985 não foi um ano dos mais felizes para a Estação Primeira, que ficou em nono lugar. Mas a homenagem a Chiquinha sobressaiu-se, já que a escolha conseguiu divulgar a corajosa história para muita gente que não a conhecia.6

  1. Papel feminino no samba, Maria Alice Rezende Gonçalves, A vila olímpica da verde-e-rosa (Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV, 1° edição 2003), p. 163.
    “Mangueira teu cenário é uma beleza”. Para fazer jus aos versos do poeta verde-e-rosa e criar um cenário favorável ao desenvolvimento dos jovens moradores da favela, o G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira desenvolveu uma série de projetos, entre os quais se destaca o Complexo Esportivo da Mangueira. São poucas as notícias sobre aqueles que se empenham em oferecer alternativas ao crime e à violência como modo de vida. Este livro analisa o envolvimento das escolas de samba nas políticas sociais e mostra como esse projeto, que conquistou reconhecimento internacional, vem ajudando a afastar crianças e adolescentes das ruas. ↩︎
  2. O Ameno Resedá foi o mais famoso de todos os ranchos carnavalescos da cidade do Rio de Janeiro. Entre seus integrantes esteve o cantor e compositor Oscar José de Almeida. Sua padroeira era Nossa Senhora da Glória. AMENO RESEDÁ. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2023. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Ameno_Resed%C3%A1&oldid=66538296>. Acesso em: 4 set. 2023. ↩︎
  3. NOGUEIRA, Nilcemar. “DONA MIÚDA”. Revista A VOZ DO MORRO, Departamento Cultural G.R.E.S.E.P de Mangueira (RJ) ano 52, julho 1986, p.6. ↩︎
  4. CASTRO, Raymundo de, “Verinha ou Lecy?” Disponível em: <https://raymundodecastro.blogspot.com/2017/07/primeira-compositora-admitida-na-ala.html>, Acesso em: 10 set. 2023. ↩︎
  5. O Zicartola (acrônimo de Zica e Cartola) foi um restaurante aberto na cidade do Rio de Janeiro pelo compositor e sambista Angenor de Oliveira, o Cartola, e sua mulher Euzébia Silva do Nascimento, a Dona Zica. Foi ponto de encontro de sambistas de destaque na cultura brasileira, como Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Nelson Cavaquinho, Zé Ketti, Ismael Silva e Aracy de Almeida, e grandes nomes da bossa nova, como Carlos Lyra e Nara Leão. Também foi palco do lançamento de Paulinho da Viola. ZICARTOLA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2021. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Zicartola&oldid=61193433>. Acesso em: 20 mai. 2021. ↩︎
  6. “As mulheres conquistam seu lugar”. Revista Mangueira 70 Anos, Departamento Cultural e Conselho de Carnaval do GRESEP de Mangueira, 1998. p.11a20 ↩︎