Atrás da Verde e Rosa só não vai quem já morreu

Fiel às suas tradições, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira sempre apresenta em seus desfiles enredos baseados em temas genuinamente nacionais, invariavelmente vinculados à história, à cultura e a pessoas — estas, como referências da criação, em qualquer campo, e como exemplos para a posteridade. Foi assim em 1966, a respeito da obra de Villa Lobos e, no ano seguinte, em relação a Monteiro Lobato — dois símbolos da nacionalidade. Da mesma forma, nos anos 80, com Braguinha (84), Chiquinha Gonzaga (85), Caymmi (86) e Carlos Drummond de Andrade (87). Mais recentemente (92), a Mangueira exaltou a obra de Antonio Carlos Jobim.

É essa preocupação com a preservação dos valores da cultura e da brasilidade que mais uma vez a Mangueira manifesta, em seu desfile deste ano, com o enredo “Atrás da Verde e Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu”. De um lado, quatro expoentes da música brasileira — Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa. De outro, com a autoridade de seus 65 anos de samba, a Estação Primeira de Mangueira. A contemporaneidade dos quatro baianos sob a sombra generosa da árvore de entranhadas raízes.

O enredo não é biográfico. O que ele mostra é impacto da contribuição dos (um dia) Doces Bárbaros na cultura popular brasileira nos últimos trinta anos. Nascidos na Bahia, banharam-se nas águas puras de um ambiente impregnado de Jorge Amado, de Dorival Caymmi, de Mãe Menininha do Gantois. Muitas vezes testemunharam, contritos, a lavagem das escadarias do Bonfim. Correram atrás do Trio Elétrico — e, anos mais tarde, contribuíram decisivamente para o seu ressurgimento. Fundaram a Tropicália1, uma abordagem ao mesmo tempo realista, ufanista e poética da realidade brasileira sem retoques — porque ela é naturalmente bela. Lançaram para todo o Brasil, n’Aquele Abraço, uma declaração de amor ao seu país e a sua gente.

Atenta a tudo isso, Mangueira hoje reverencia seus quatro homenageados com um carnaval leve, alegre, em muitos momentos ousado.

Como na abstração, explicitada em fantasias e alegorias, de uma imaginária fusão de símbolos e valores do Rio e de Salvador, com os Arcos da Lapa e o Farol da Barra fomando uma síntese formidável. Como diz a letra do samba. “…quem me mandou estrelas de lá / foi São Salvador prá noite brilhar”.

É com esse espírito de congraçamento, com sua devoção ao samba, com sua garra e magia, que Mangueira inicia o seu desfile. E pede passagem.2

  1. Tropicália, tropicalismo ou movimento tropicalista foi um movimento cultural brasileiro da segunda metade da década de 1960. Embora a música fosse sua expressão principal, a Tropicália envolveu outras formas de arte como cinema, teatro e poesia. Uma das marcas principais do tropicalismo foram suas inovações estéticas radicais, que mesclavam elementos de manifestações tradicionais da cultura do Brasil – notadamente a união do popular e da vanguarda, bem como a fusão da tradição brasileira – com tendências estrangeiras da época. Esses objetivos comportamentais encontraram eco em boa parte da sociedade brasileira sob a ditadura militar no final da década de 1960. ↩︎
  2. MANGUEIRA CARNAVAL 1994 – Atrás da Verde e Rosa só não vai quem já morreu. Revista, Editor Osvaldo Martins, p.32. ↩︎