Lena Frias
Para definir Beth, uma concisa e feliz de Candeia: “Samba na veia”
BETH Carvalho nasceu em Gamboa, centro do Rio de Janeiro, beira-rua da Saúde, morro que tem história de samba em todas as vertentes: um dos flancos abre-se para as plagas da Central do Brasil, onde as tias baianas bateram candomblé e fomentaram pagodes, aos tempos da Cidade Nova. Nascida na Gamboa e criada na Zona Sul carioca — Urca, Botafogo, Leblon — tem com ela aquele radical a mais, vocação de entrar na roda e dançar, e dizer no gogó os recados que a Saúde ensinou, e Candeia simplifica em concisa e feliz frase: “samba na veia”. Beth Carvalho cursou escola de samba no gostoso treino de entrega de mãos, dos pés, das cadeiras, do corpo inteiro à melodia e ao ritmo. Recebeu (e o diz com orgulho) forte influência de Clementina de Jesus, a quem dedicou seu elepê Canto para um Novo Dia; e de Elisete Cardoso, particularmente em Elisete Sobe o Morro, aula de interpretação e sábia escolha de repertório. Beth o é exigente na definição do seu repertório, que deve sempre se compor segundo a finalidade específica de cada um dos discos: esta é a tônica da sua sistemática de trabalho. Cada elepê tem um objetivo particular, dentro de um programa geral de intenções.
Beth, artista, graduada nos botequins da vida (ano passado o elepê com esse título, foi dedicado aos músicos do Brasil, na pessoa do maestro Horondino Silva, o Dino do violão de sete cordas). Salame, cerveja, carne assada, peixe frito, cardápio de botequim é pão das gentes; a cachaça nossa de cada dia é vinho de comunhão; “No fim de semana, aquela feijoada/ cachaça é uma água mais benta/ do que a que o padre batiza na pia/ você e eu, orgia”. Candeia e Martinho da Vila irreverentes e verdadeiros em Você eu, Orgia, canto de força no elepê que Beth está lançando agora, Pé no Chão, dedicado a Cartola (cada disco ela dedica a uma personalidade, revelando, assim as influências e afetos) de quem gravou Que sejam Bem Vindos.
Cheia de respeito e tocada por forte amor, a moça criada na Zona Sul cedo iniciou-se na “selva” dos barra-pesadas, dos rezas-fortes, dos cabeças-feitas, dos cobras-criadas, da alta malandragem do goró, no universo de criação do povo, onde o samba explode molhado de suor e cheio de raiva: “Onde o mercenarismo impõe a sua gana/ e o sambista que não tem grana/ não brinca mais o carnaval”. Neném e Pintado reclamando no samba Visual e Beth Carvalho emprestando vos às legítimas reivindicações da dupla do bloco carnavalesco Canarinhos das Laranjeiras. Será essa, talvez, uma das razões que a fazem uma das maiores vendagem de discos no país: tornou-se intérprete de pensamentos e sentimentos tomados diretamente nas fontes de criação mais populares. Ela o confirma de Pé no Chão, disco que acaba de configurar as linhas da sua proposta como intérprete de música brasileira: cantar principalmente a crônica do dia-a-dia; a realidade e a fantasia; as tristezas, as esperanças, e, sobretudo as certezas exigências do povo. Por isso mesmo ela trouxe para o novo disco a presença exuberante do Bloco Carnavalesco Cacique de Ramos, que faz a “cozinha” do elepê. “Cozinha” enriquecida pelas presenças de Eliseu, Luna, Pesão, Wilson das Neves, papão, Everaldo, Juca. Bloco na rua, gana, garra, embalo e empolgação, saudando São Sebastião, padroeiro do Cacique de Ramos e da Cidade do Rio de Janeiro.
O novo disco registra o Rio na sua realidade de samba, botequins, salários mínimos, reza para o santo, boêmia, a fantasia. E a permanente, desatada alegria, que na alegria está a resistência.
Beth gravou Linda Borboleta de Paulo da Portela (Paulo Benjamim de Oliveira), a que Monarco (Hildemar Diniz) acrescentou contribuição. Gravação histórica, nunca antes estas borboletas de asa organdi, lembrança de rancho, haviam alcançado o disco.
Gravou também, Agoniza mas não morre, de Nelson sargento (Nelson Motta). Sobre o mesmo assunto de Visual, a Estação Primeira de Mangueira acrescenta opinião definitiva, através de um dos seus mais velhos e autorizados compositores. “Samba, negro forte, destemido/ foi duramente perseguido/ na esquina, no botequim, no terreiro/”, canta Nelson Sargento, para concluir que, apesar de toda a perseguição, o samba não morreu nem morrerá, vitalidade garantida. Vou Festejar, de Jorge Aragão, Neoci e Dida é abertura e more do sétimo elepê da artista, um arrasta-povo de tirar o fôlego. Muito importante foi a decisão de gravar um desconhecido e belo autor da Velha Guarda da Portela: Passarinho, de Chatim da Portela (Thompson José Ramos). Pela primeira vez Chatim rodando num disco e que imprimindo ao elepê importância de subsídio histórico.
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Beth acaba de voltar de excursão pelo Brasil, através do Projeto Pixinguinha. Está entusiasmada com as platéias País afora sentindo que as fontes de realimentação dos artistas — o estímulo do público é uma delas — longe de secarem, estrão cada vez mais generosas. E mais generosos ainda são os aplausos quando ela interpreta repertório mais Pé no Chão, dado que desmente o propalado desgosto brasileiro pelas coisas nossas. Beth conta que, ao encerrar o show, com o samba de Nelson Sargento, Agoniza mas não Morre, o pessoal só falta entrar em transe, o entusiasmo da platéia legitimando o manifesto de fé que esse Sargento, nos últimos tempos meio sumido, acaba de transformar num hino de resistência: “Samba/ agoniza mas não morre/ alguém sempre te socorre/ antes do suspiro derradeiro”.
E quando ele diz samba, diz música brasileira, diz cultura brasileira. Não há discotheque nem qualquer forma de colonialismo que mate essência das gentes brasileiras, a cultura que dá fisionomia. “Vamos receber as influências, absorver tudo e fazer ao nosso jeito. Agora isso de virar gringo, não dá certo. Para cantar americano não tem ninguém que faça melhor que americano”, comentava simpático e desdentado sambista, dia desses, em Quilombo. Beth Carvalho, este ano, veio a fim de mostrar bloco, manifestação viva do carnaval de rua (não vê bloco quem não quer, não sai por aí, e pensa que as coisas só acontecem nos palcos iluminados dos bares, calçadas, praias e pontos de moda dos passeios e colonizados bairros do Rio), e, se não acontecem na Zona Sul, logo se diz “morreu”. Vem aí de Marcando Bobeira, de Beto sem Braço que outro não é senão o autor de Cara no Mundo, clássico de carnaval, que ficará no boca do povo quanto o Mamãe eu Quero. Beto sem Braço botou seu Cacique de Ramos rua afora e salões a dentro com Cara no Mundo, carnaval de 1978, aquela loucura (“Ai que vontade de meter a cara no mundo”, ai que vontade…). Marcando Bobeira tem o pique do Cacique e Beto sem Braço faz parceria com João Quadrado e Dão. Beth define suas intenções: mostrar compositor novo, gravar antigo, dar valor a grandes nomes como Candeia, Monarco, Martinho, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, gente que nunca está fora dos meus discos. Eu sou uma intérprete. Então o meu papel é interpretar o pensamento dos compositores, emprestar a minha voz para que o máximo de pessoas escute o que eles tem a dizer”. Modo geral ela grava o pessoal da reza-forte. Ou os bons trabalhos de compositores que, sem serem criadores do povo, no povo se inspiram e para o povo se voltam num sentido de sadia aprendizagem. Beth Carvalho partirá, agora, para um circuito universitário a diversas cidades brasileiras.
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