BETH CARVALHO DE PÉ NO CHÃO ANUNCIA E ABRE CAMINHO PARA O CACIQUE DE RAMOS
JORNAL DO BRASIL, 27-9-78. CADERNO B, p.2

Lena Frias

Para definir Beth, uma concisa e feliz de Candeia: “Samba na veia”

BETH Carvalho nasceu em Gamboa, centro do Rio de Janeiro, beira-rua da Saúde, morro que tem história de samba em todas as vertentes: um dos flancos abre-se para as plagas da Central do Brasil, onde as tias baianas bateram candomblé e fomentaram pagodes, aos tempos da Cidade Nova. Nascida na Gamboa e criada na Zona Sul carioca — Urca, Botafogo, Leblon — tem com ela aquele radical a mais, vocação de entrar na roda e dançar, e dizer no gogó os recados que a Saúde ensinou, e Candeia simplifica em concisa e feliz frase: “samba na veia”. Beth Carvalho cursou escola de samba no gostoso treino de entrega de mãos, dos pés, das cadeiras, do corpo inteiro à melodia e ao ritmo. Recebeu (e o diz com orgulho) forte influência de Clementina de Jesus, a quem dedicou seu elepê Canto para um Novo Dia; e de Elisete Cardoso, particularmente em Elisete Sobe o Morro, aula de interpretação e sábia escolha de repertório. Beth o é exigente na definição do seu repertório, que deve sempre se compor segundo a finalidade específica de cada um dos discos: esta é a tônica da sua sistemática de trabalho. Cada elepê tem um objetivo particular, dentro de um programa geral de intenções.

Beth, artista, graduada nos botequins da vida (ano passado o elepê com esse título, foi dedicado aos músicos do Brasil, na pessoa do maestro Horondino Silva, o Dino do violão de sete cordas). Salame, cerveja, carne assada, peixe frito, cardápio de botequim é pão das gentes; a cachaça nossa de cada dia é vinho de comunhão; “No fim de semana, aquela feijoada/ cachaça é uma água mais benta/ do que a que o padre batiza na pia/ você e eu, orgia”. Candeia e Martinho da Vila irreverentes e verdadeiros em Você eu, Orgia, canto de força no elepê que Beth está lançando agora, Pé no Chão, dedicado a Cartola (cada disco ela dedica a uma personalidade, revelando, assim as influências e afetos) de quem gravou Que sejam Bem Vindos.

Cheia de respeito e tocada por forte amor, a moça criada na Zona Sul cedo iniciou-se na “selva” dos barra-pesadas, dos rezas-fortes, dos cabeças-feitas, dos cobras-criadas, da alta malandragem do goró, no universo de criação do povo, onde o samba explode molhado de suor e cheio de raiva: “Onde o mercenarismo impõe a sua gana/ e o sambista que não tem grana/ não brinca mais o carnaval”. Neném e Pintado reclamando no samba Visual e Beth Carvalho emprestando vos às legítimas reivindicações da dupla do bloco carnavalesco Canarinhos das Laranjeiras. Será essa, talvez, uma das razões que a fazem uma das maiores vendagem de discos no país: tornou-se intérprete de pensamentos e sentimentos tomados diretamente nas fontes de criação mais populares. Ela o confirma de Pé no Chão, disco que acaba de configurar as linhas da sua proposta como intérprete de música brasileira: cantar principalmente a crônica do dia-a-dia; a realidade e a fantasia; as tristezas, as esperanças, e, sobretudo as certezas exigências do povo. Por isso mesmo ela trouxe para o novo disco a presença exuberante do Bloco Carnavalesco Cacique de Ramos, que faz a “cozinha” do elepê. “Cozinha” enriquecida pelas presenças de Eliseu, Luna, Pesão, Wilson das Neves, papão, Everaldo, Juca. Bloco na rua, gana, garra, embalo e empolgação, saudando São Sebastião, padroeiro do Cacique de Ramos e da Cidade do Rio de Janeiro.

O novo disco registra o Rio na sua realidade de samba, botequins, salários mínimos, reza para o santo, boêmia, a fantasia. E a permanente, desatada alegria, que na alegria está a resistência.

Beth gravou Linda Borboleta de Paulo da Portela (Paulo Benjamim de Oliveira), a que Monarco (Hildemar Diniz) acrescentou contribuição. Gravação histórica, nunca antes estas borboletas de asa organdi, lembrança de rancho, haviam alcançado o disco.

Gravou também, Agoniza mas não morre, de Nelson sargento (Nelson Motta). Sobre o mesmo assunto de Visual, a Estação Primeira de Mangueira acrescenta opinião definitiva, através de um dos seus mais velhos e autorizados compositores. “Samba, negro forte, destemido/ foi duramente perseguido/ na esquina, no botequim, no terreiro/”, canta Nelson Sargento, para concluir que, apesar de toda a perseguição, o samba não morreu nem morrerá, vitalidade garantida. Vou Festejar, de Jorge Aragão, Neoci e Dida é abertura e more do sétimo elepê da artista, um arrasta-povo de tirar o fôlego. Muito importante foi a decisão de gravar um desconhecido e belo autor da Velha Guarda da Portela: Passarinho, de Chatim da Portela (Thompson José Ramos). Pela primeira vez Chatim rodando num disco e que imprimindo ao elepê importância de subsídio histórico.

Beth acaba de voltar de excursão pelo Brasil, através do Projeto Pixinguinha. Está entusiasmada com as platéias País afora sentindo que as fontes de realimentação dos artistas — o estímulo do público é uma delas — longe de secarem, estrão cada vez mais generosas. E mais generosos ainda são os aplausos quando ela interpreta repertório mais Pé no Chão, dado que desmente o propalado desgosto brasileiro pelas coisas nossas. Beth conta que, ao encerrar o show, com o samba de Nelson Sargento, Agoniza mas não Morre, o pessoal só falta entrar em transe, o entusiasmo da platéia legitimando o manifesto de fé que esse Sargento, nos últimos tempos meio sumido, acaba de transformar num hino de resistência: “Samba/ agoniza mas não morre/ alguém sempre te socorre/ antes do suspiro derradeiro”.

E quando ele diz samba, diz música brasileira, diz cultura brasileira. Não há discotheque nem qualquer forma de colonialismo que mate essência das gentes brasileiras, a cultura que dá fisionomia. “Vamos receber as influências, absorver tudo e fazer ao nosso jeito. Agora isso de virar gringo, não dá certo. Para cantar americano não tem ninguém que faça melhor que americano”, comentava simpático e desdentado sambista, dia desses, em Quilombo. Beth Carvalho, este ano, veio a fim de mostrar bloco, manifestação viva do carnaval de rua (não vê bloco quem não quer, não sai por aí, e pensa que as coisas só acontecem nos palcos iluminados dos bares, calçadas, praias e pontos de moda dos passeios e colonizados bairros do Rio), e, se não acontecem na Zona Sul, logo se diz “morreu”. Vem aí de Marcando Bobeira, de Beto sem Braço que outro não é senão o autor de Cara no Mundo, clássico de carnaval, que ficará no boca do povo quanto o Mamãe eu Quero. Beto sem Braço botou seu Cacique de Ramos rua afora e salões a dentro com Cara no Mundo, carnaval de 1978, aquela loucura (“Ai que vontade de meter a cara no mundo”, ai que vontade…). Marcando Bobeira tem o pique do Cacique e Beto sem Braço faz parceria com João Quadrado e Dão. Beth define suas intenções: mostrar compositor novo, gravar antigo, dar valor a grandes nomes como Candeia, Monarco, Martinho, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, gente que nunca está fora dos meus discos. Eu sou uma intérprete. Então o meu papel é interpretar o pensamento dos compositores, emprestar a minha voz para que o máximo de pessoas escute o que eles tem a dizer”. Modo geral ela grava o pessoal da reza-forte. Ou os bons trabalhos de compositores que, sem serem criadores do povo, no povo se inspiram e para o povo se voltam num sentido de sadia aprendizagem. Beth Carvalho partirá, agora, para um circuito universitário a diversas cidades brasileiras.

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