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J. R. Tinhorão

Uma velha tradição popular vigente entre os sambistas cariocas reserva aos poetas das suas comunidades uma auréola de prestigio que tem muito a ver com o respeito da Idade Média pelos seus trovadores. E’ que na Europa da Idade Média, como entre o povo, no Brasil de hoje (e as coincidências, se formos procurar bem, se estendem também, em muitos casos, até aos campos da economia e da política), os poetas exibem e exibem uma qualidade que fascina o povo: sabem ler e escrever. E foi assim que, não apenas conhecendo o segredo de converter as palavras em símbolos gráficos, mas sendo ainda capazes de encadeá-las num fluxo encantatório de rimas, os poetas trovadores passaram a ser considerados mais importantes do que próprios músicos de sua própria classe.

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Uma dessas figuras de poeta popular dos morros cariocas, que a fama de saber versar com palavras erigiu o mito, é o antigo ferroviário Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça, o parceiro do também legendário Cartola, do morro da Mangueira. Carlos Cachaça, hoje com 74 anos confessados (más línguas velhas dizem que nasceu em 1901), viveu até recentemente mais ou menos desconhecido do grande público, reproduzindo em relação a seu parceiro Cartola mais ou menos o que acontecia também com Guilherme de Brito no caso de Nélson Cavaquinho. Agora, porém — graças a mais uma benemérita iniciativa de Pelão, que faz sua rentrée como produtor de discos — vamos poder conhecer melhor a figura do poeta de rebuscados versos mangueirenses. O disco Carlos Cachaça, que é o 21° da série Ídolos da MPB da Continental, tem realmente o sentido de um documento. Graças ao sentido de propriedade de Pelão, e á discrição do arranjador João de Aquino (que colaborou fazendo um mínimo de arranjos), Carlos Cachaça pode exibir a sua antivoz de cantor numa quase declamação de seus versos de um romantismo algo barroco, e que tem a sorte de contar com um acompanhamento maravilhoso a cargo de instrumentistas do tope de Raul de Barros (trombone), Copinha (flauta), Meira (violão), Canhoto (cavaquinho), Valdir de Paula (jovem violão de sete cordas da escola de Dino, e por sinal muito bom), mais a cozinha rítmica Elizeo, Jorginho, Gilson, Armando Marçal Filho e um estreante: Armando Marçal Neto, filho de Armando Marçal Filho e realmente neto do grande compositor do Catumbi, na década de 30, o fabuloso parceiro de Bide (vide Agora E’ Cinza), o Armando Vieira Marçal.

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O disco, enquanto retrato de Carlos Cachaça, é de uma propriedade absoluta, e seu despojamento chega ao ponto de fazer o velho sambista cantar, cantar o seu belo Amor de Carnaval apenas com o acompanhamento de violão e… caixa de fósforos. E, o que é melhor, com um resultado surpreendente, o que deve deixar os angustiados vanguardistas parceiros da Light da atualidade, tão preocupados em preencher o vazio das próprias almas com a fusão de todos os desenhos que figuram no espectograma sonoro. Quanto a Carlos Cachaça, pessoalmente, além de mostrar admiravelmente, para os que não o conhecem, quem é o poeta Carlos Cachaça, ainda tem a generosidade de mostrar que seu talento não se esgota em fazer versos barroco-mangueirenses e ser parceiro de Cartola: na quinta faixa da face B do disco nos brinda com uma bela valsa dedicada à sua velha musa e mulher Clotilde. Porque os verdadeiros trovadores e poetas, afinal, ainda são capazes destas delicadezas.1

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TINHORÂO, J.R. ‘CARLOS CACHAÇA ESTRÉIA AOS 74 ANOS: MAS VALEU ESPERAR’. JORNAL DO BRASIL (RJ) 3-8-76, Caderno B p.5 ↩︎