CARROS NAVALIS, CARNAVALE, CARNAVAL DOS CARNAVAIS - EDIÇÃO ESPECIAL DE GALA - Fevereiro de 1972. Rio, Carnaval dos Carnavais enredo do G.R.E.P. Escola de Samba de Mangueira para o Carnaval de 1972 p.4.
EDIÇÃO ESPECIAL DE GALA – Fevereiro de 1972. Rio, Carnaval dos Carnavais enredo do G.R.E.P. Escola de Samba de Mangueira para o Carnaval de 1972 p.4.

Texto de Nonnato Masson — enrêdo de Pedro Paulo Lopes

O verdadeiro, o legítimo, o autêntico, o único tipo de carnavalesco real é o característico do Rio de Janeiro. A espécie é nossa, únicamente nossa, essencialmente e exclusivamente carioca. Só o Rio de Janeiro, com seus carnavais maravilhosos e inconfundíveis, que ainda se hão de suceder pelos séculos sem fim, possui o verdadeiro carnavalesco — assim deixou dito Olavo Bilac. E êsse verdadeiro carnavalesco é o sambista. O sambista de escola. O sambista que faz do desfile das escolas de samba, na noite do domingo de carnaval, o maior espetáculo popular, a céu aberto, do mundo. O sambista que faz do carnaval do Rio o carnaval dos carnavais. Mais belo de que os carnavais de Veneza, de Nice, de Nápoles, de Florença, reunidos.

Se perdem na memória do tempo as origens de carrus navalis, carnevale — festa pagã, com passeatas ruidosas, desfiles, críticas.

Encontram-se, na história das civilizações, vestígios dessa festa que, a princípio, era de conteúdo místico.

Os egípcios, por exemplo, na antiguidade remota, festejavam ruidosamente a deusa Ísis e Ápis, um boi que adoravam como divindade. Os hebreus realizavam animadas festas das sortes e os babilônios, a Sacae.

Carnavalescas eram as bacanais — festas em honra de Baco, celebradas pelos gregos com muita bebida e muita algazarra. Carnavalescas eram as saturnais — festas em honra de Saturno, celebradas pelos romanos, no mês de dezembro, com grande animação. (Enquanto duravam as saturnais não era permitido tratar de negócios algum, tôdas as distinções dos empregos cessavam e até mesmo os escravos podiam, impunemente, dizer a seus senhores tudo quanto quisessem e chegavam até a escarnecer, na sua presença, dos seus próprios defeitos.) Carnavalescas eram as lupercais — licenciosas festas em honra de Pã; eram as dionisíacas em honra de Dionísio. As festas dos “inocentes e dos loucos”, realizadas no período da Idade Média em tôda a Europa, e particularmente as que os celtas e os teutões realizavam em honra de Herta, deusa chamada de mãe-terra, eram carnavalescas.

PASSEATAS

Havia nessas festas passeatas ruidosas em navios que se movimentavam sôbre rodas, muito enfeitados com bandeiras de côres vistosas, que conduziam pessoas travestidas em personagens ilustres, entoando canções impudicas, fazendo crítica, em companhia de mulheres nuas, atraindo aplausos delirantes do público. Levavam todos tochas acesas para afastar os maus espíritos. Êsses navios eram os carrus navalis, os carros navais — donde, segundo alguns historiadores, se originou a palavra carnaval.

Littré, porém, dá outra origem etimológica. Ensina: “carnavale, do dialeto milanês, trasladado do baixo latim carnelevamem, de caro (carne) e levamem (ação de tirar) ; assim, pois, tempo em que se tira o uso da carne”, já que o carnaval é, própriamente, a noite antes da Quarta-Feira de Cinzas — carnaval é, históricamente, apenas a noite chamada de têrça-feira gorda.

Provou Littré que a palavra carnaval não se origina de carne vale, adeus à carne como entendem alguns, pois em italiano não há a palavra vale.

CORRIDAS

O carnaval em sua forma mais augusta de espetáculo popular, o carnaval romano, venerado por tôda a cristandade, data do pontificado de Paulo II — esclarece o poeta Jorge de Lima. O carnaval romano da época de Paulo II era chamado de moccoletti e transcorria com desfile de carros alegóricos, corridas de cavalos e de corcundas, batalhas de confete e de ovos, e luminárias de tocos de vela.

Festa de origem pagã, o carnaval depende, no entanto, de uma comemoração da Igreja Católica para a fixação da sua data e, por isso, se enquadra no calendário das festas religiosas móveis. Vejamos: quando a Igreja marca a festa da Ressurreição de Cristo (Páscoa) fixa o carnaval. Não podendo a celebração em memória da Ressurreição de Cristo coincidir com a Páscoa dos hebreus (festa anual em memória da fuga do povo hebreu do Egito), determinou a Igreja Católica que a Páscoa da Resurreicão caísse sempre no primeiro domingo depois do 14° dia da lua que vem após 21 de março. A Páscoa da Ressurreição será assim, de acôrdo com o calendário cristão, sempre no primeiro domingo após a lua cheia imediatamente posterior ao equinócio da primavera, que se passa a 21 de março (hemisfério Norte). Se, no entanto, 21 de março cair no sábado e a lua fôr cheia, o dia 22 será o Domingo de Páscoa. Entretanto, se a primeira lua cheia — isto é, o 14° dia após o equinócio — ocorrer 29 dias depois de 20 de março, e êste fôr domingo de Páscoa só podera ser a 25 de abril. Dessa forma, o Domingo de Páscoa deve cair entre 22 de março e 25 de abril.

Determinada a festa em memória da Ressurreição de Cristo está fixado o Domingo de Carnaval. Domingo da Qüinquagésima ou Domingo Gordo, que deverá ser sempre sete domingos antes da celebração da Páscoa. Assim se explica por que o carnaval ora é em fevereiro, ora é em março.

LIMÕES

O carnaval no Brasil começou com o entrudo (corruptela de introitus, introdução das cerimônias litúrgicas da Quarta-Feira de Cinzas). Foi trazido ao Rio pelos portuguêses e sua prática consistia, a princípio, em jogar água, limpa ou suja, mal-cheirosa na cara dos desavisados. Era praticado com violência desenfreada, pelas gentes da elite, tanto na rua como dentro de casa. Passaram a ser usados depois, no jôgo do entrudo, cal, goma, tinta, vermelhão, pedra, pau, lata velha, tudo, enfim. Tornou-se mais ameno, tantas foram as campanhas contra a sua prática, com o emprêgo de limões de cheiro, que eram lançados à distância e espoucavam sôbre as pessoas. Os limões eram feitos de cêra e continham água perfumada.

Os negros escravos, porém, se divertiam nas ruas, aos bandos, tocando seus instrumentos de percussão, vestidos com vistosas roupagens, imitando os trejeitos dos seus senhores e feitores. Tocavam e cantavam a xiba, sua dança de batuque; batucajé, cateretê, congo, lundu.

À imagem e semelhança dos de Paris e Veneza, o dono do Hotel Itália, na Praça Tiradentes, promoveu a 22 de janeiro de 1840, um baile de máscaras nos salões do seu estabelecimento. Animado por polcas e mazurcas êsse foi o primeiro baile carnavalesco realizado no Rio. Tendo obtido sucesso, outros hotéis passaram a abrir os seus salões, durante o carnaval, para a realização de bailes até que, em 1855, os foliões decidiram desfilar pelas ruas com suas ricas e finíssimas fantasias.

Tendo à frente figuras ilustres como o escritor José de Alencar, e contando com o apoio e simpatia do Imperador Pedro II, foi organizado e desfilou, com os foliões em vitórias e charretes e landaus, pelo Campo de São Cristóvão, o Primeiro Congresso das Sumidades Carnavalescas. Logo, outras sociedades foram formadas: União Veneziana, Zuavos, Euterpe Comercial (que deu origem à Sociedade Tenentes do Diabo), Congresso das Damas, Boêmia, Estudantes de Heidelberg, Nova Cromática, Democráticos, Inimitáveis, Fenianos.

CARROS NAVALIS, CARNAVALE, CARNAVAL DOS CARNAVAIS - EDIÇÃO ESPECIAL DE GALA - Fevereiro de 1972. Rio, Carnaval dos Carnavais enredo do G.R.E.P. Escola de Samba de Mangueira para o Carnaval de 1972 p.8.
EDIÇÃO ESPECIAL DE GALA – Fevereiro de 1972. Rio, Carnaval dos Carnavais enredo do G.R.E.P. Escola de Samba de Mangueira para o Carnaval de 1972 p.8.
ALEGORIAS

O Congresso das Sumidades Carnavalescas apresentou o primeiro desfile de críticas e alegorias e o primeiro travesti. Em 1856 um grupo de estudantes paulistas organizou a Sociedade Carnavalesca Paulicéia Vagabunda e foi um escândalo: pela primeira vez desfilaram moças pelas ruas. As môças atiravam beijos aos populares, estouravam garrafas de champanha, faziam misérias.

Um português baixo e barrigudo apareceu, de tamancos e camisa aberta ao peito, tocando um grande zabumba, à semelhança dos zé-pereiras que despertavam as cidades e aldeias portuguesas em dias de festa. Apareceu o dominó como fantasia. Era um gabão prêto, largo, folgado, com capuz, igual aos que os frades na Europa usam durante o inverno. Por que chamaram gabão de dominó não há notícia. O advento do dominó começou a ofuscar o esplendor das fantasias de Pierrô, Arlequim e Colombina — que eram usadas nos bailes — e foi ofuscado, tempos depois, pela fantasia de Cruz-Diabo.

De Paris, “iguais às de Veneza”, chegaram ao Rio as primeiras máscaras. De massa. A primeira máscara nacional foi de papelão vermelho, usada por um açougueiro de São Cristóvão chamado António José de Melo. Registra ainda a crônica do carnaval carioca que na segunda-feira de carnaval êle montou numa vaca e passou cinco horas subindo e descendo a Rua do Cano, atual Rua Sete de Setembro. Consta que a máscara era igualzinha à cara de Vasques, ator famoso na época.

CORDÕES

Há notícia de que o primeiro cordão carnavalesco que cruzou as ruas do Rio foi o Flor de São Lourenço. Em 1885.

Nos cordões só saía homem e em pouco tempo êles eram muitos, animando o carnaval com suas cantorias, com seus maxixes e lundus: Os Invisíveis, Capricho da Mocidade, Prazer da Lua, Mulher Vermelha, Flor da Primavera.

Os cordões eram divididos em dois grupos de foliões a caráter: o dos índios, representando o nativo, e o dos “reis do diabo”, representando os vice-reis e a Côrte de Dom João VI e de Dom Pedro I, o fisco e os meirinhos. Devido às críticas que faziam e à repressão policial que sofriam, os cordões foram aos poucos se extinguindo e deram lugar aos Blocos.

BLOCOS

Foi o cordão Os Invisíveis o primeiro a virar bloco. Passou a se chamar Tira o Dedo do Pudim. E outros surgiram: Filhos da Estrêla de Dois Diamantes, Filhos do Poder do Ouro, Chuveiro Real de Prata da Angola.

A primeira música feita especialmente para o carnaval foi cantada em 1855 pelo cordão Flor de São Lourenço. A letra era esta:

Ó Dona Mariquinha
Agite o seu lenço
Para, dar um viva
Ao Flor de São Lourenço

Outra música famosa de cordão carnavalesco foi a que o Prazer da Lua cantou nas ruas do Rio em 1856:

O Prazer da Lua
É que me faz chorar
E só tu morena
É quem me faz penar

Não há registro do nome dos seus compositores. Ficou apenas, na crônica das primeiras músicas feitas para o carnaval carioca, o nome da compositora e maestrina Chiquinha Gonzaga. Em 1899, a pedido do bloco Rosa de Ouro, do Andaraí, ela compôs a marcha Abre Alas:

Ó abre alas
Que eu quero passar,
Eu sou da lira
Não posso negar
Ô abre alas
Que eu quero passar,
Rosa de Ouro
É que vai ganhar.

RANCHOS

Com o passar do tempo os blocos foram deixando de sair às ruas com tema e música próprias. E no comêço do século apareceram os ranchos carnavalescos, um dos primeiros foi o Dois de Ouro, com muitas mulatas e cabrochas, porta-estandarte e mestre-sala, e um conjunto instrumental de violões, cavaquinhos, flautas, clarinetes, tambores e pandeiros, que acompanhavam a marcha do rancho.

Passou o rancho a ser o encanto do carnaval carioca. Cada rancho apresentava uma história e seus figurantes se vestiam de acôrdo com o enrêdo. Marcaram época o Rosa Banca, o Cananga do Japão, o Ameno Resedá. Êste teve até a honra de ser recebido no Palácio do Catete, pelo Presidente da República, com o préstito A Côrte de Belzebu.

O sensualismo no carnaval carioca começou em 1890 com uma môça de 23 anos chamada Aurora Rozani. Bem feita de corpo, de longos cabelos negros, lábios finos e seios atrevidos, ela desfilou, sábado, no bloco Rosa de Ouro, com um vestido transparente. Consta que o escândalo foi tal que muitas famílias usaram luto fechado de domingo até têrça-feira de carnaval, antecipando-se à Quaresma, quando era costume, só vestir roupa preta.

Anunciaram os jornais em 1892 que “em vez das bisnagas e do limões de borracha, que bem boas constipações promoviam, tivemos uma novidade êste ano no carnaval: os confetti parisienses, que consistem em algumas rodelas de papel colorido, que são atiradas sôbre os que passam e são um passatempo agradável para os rapazes e as môças”.

O Prefeito Pereira Passos, em 1905, proibiu o uso das bisnagas e dos limões de borracha de água de cheiro e apareceram então, no carnaval cariocal os primeiros lança-perfumes, das marcas Rodo e Vlan, importados da França e da Suiça

ESCOLAS

No comêço da década de 10, com o aparecimento do automóvel no Rio, surgiu o corso, que se movimentava pela Avenida Beira-Mar até o Mourisco. E com o corso apareceu a serpentina e foram realizadas batalhas de flôres no Campo de Santana e de confete na Rua do Ouvidor.

A partir de 1917, com o lançamento, em disco de Pelo Telefone, de Mauro de Almeida e Donga, um nôvo ritmo passaria a dominar o carnaval: o samba. Até então samba era ajuntamento de malandros, com violão, mulher e cachaça. Era também baile popular da roça, sinônimo de pagodeira, de briga.

Em 1923 o Jornal do Brasil regulamentou o desfile dos ranchos pela Avenida Rio Branco e em 1929, do bairro de Estácio de Sá, saiu um conjunto carnavalesco, chamado Deixa Falar, formando “uma escola de samba”, e foi desfilar na Praça Onze de Junho.

A 28 de abril de 19291 os sambistas do Morro de Mangueira se reuniram e fundaram a Escola de Samba Estação Primeira. Outras foram organizadas nesse ano e pelo carnaval de 1930 desfilaram na praça Onze de Junho as escolas de samba Deixa Falar, Estação Primeira, Cada Ano Sai Melhor (do Morro de São Carlos), Vai Como Pode, Para o Ano Sai Melhor e Vizinha Faladeira.

Deixa Falar ganhou os desfiles de 1930 e 1931. Em 1932 a vencedora foi a Estação Primeira de Mangueira, que voltou a vencer em 1933, neste ano com o enrêdo Uma Segunda-Feira no Bonfim.

Foi instituído em 1931, pelo Jornal do Brasil, o concurso para escolha da Rainha do Carnaval. A primeira rainha foi Rosa Boreli, da Banda Portugal. Os Irmãos Valença, cantores e compositores, mandaram do Norte para Lamartine Babo, a música de uma marcha, com o título de O Teu Cabelo não Nega, com versos caipiras. Lamartine escreveu outros versos e a lançou no carnaval de 1932. Surgiu assim o Hino Nacional do Carnaval.

O jornal A Noite criou, em 1934, o Rei Momo. O primeiro Rei Momo foi um boneco e chegou à Praça Mauá, domingo de carnaval a bordo do rebocador Mocanguê. A Rainha Moma foi inventada por diretores da Associação dos Cronistas Carnavalescos: a primeira, eleita em 1934, foi um homem. Travestido2.

  1. A data da fundação da Estação Primeira de Mangueira é 28 de abril do ano de 1928, segundo vários depoimentos de Cartola, um de seus fundadores, não 1929, como informado no texto acima. Essa “confusão” em torno da data de fundação se dá, porque segundo o jornalista Sérgio Cabral, no livro “Escolas de Samba do Rio de Janeiro” (editora Lumiar, 1996), a verdadeira data de fundação da Estação Primeira de Mangueira é 28 de abril de 1929 – ou seja, um ano depois do que diz Cartola e a história oficial da escola. A razão da polêmica: a Deixa Falar, considerada por unanimidade pelos sambistas como a primeira escola de samba da história mas que na verdade sempre quis ser um rancho, é de 12 de agosto de 1928 (segundo o fundador Ismael Silva em depoimento a Cabral). Em seu livro, Cabral, um dos maiores especialistas no assunto, mostra até um documento oficial da Mangueira, de 1939, com a data de fundação como 28 de abril de 1929 no papel timbrado da escola com o nome “Escola de Samba Estação Primeira”. Os documentos apresentados por Cabral foram retirados do arquivo do radialista Almirante (Henrique Foreis Domingues). São cartas enviadas ao radialista pela direção da escola, em janeiro e abril de 1939. Ou seja, se a verde e rosa é de 28 de abril de 1928, ela teria surgido quatro meses antes da Deixa Falar. ↩︎
  2. MASSON, Nonnato. “CARROS NAVALIS CARNAVALE CARNAVAL DOS CARNAVAIS”. Revista: EDIÇÃO ESPECIAL DE GALA – Fevereiro de 1972. Rio, Carnaval dos Carnavais enredo do G.R.E.P. Escola de Samba de Mangueira para o Carnaval de 1972. Redatores: Dácio de Almeida e Nonnato Masson. p.4-a-11. ↩︎