Clementina
Clementina / J. Fernando Azevedo

CLEMENTINA de Jesus não é sòmente um documento vivo do nosso folclore: em suas raízes primitivistas, Quelé tornou-se o repositório de um tipo de música que estava se extinguindo, porque não documentada em disco: as batucadas e partidos cantados nas rodas de samba e candomblés, nas casas das famosas “tias” bahianas do início do século; as modas de viola que ela ouviu de sua mãe, que por sua vez as recebeu de herança de seus antepassados escravos; e todo um acervo que é, em parte, registrado nesta gravação. Também o que nos interessa em Clementina, além de seu valor patrimonial, é a força dramática de seu canto, que tem raízes fundas e inconscientes no processo que fornece as células mais vivas e imperecíveis que caracterizam a identidade de nossa linguagem musical. Clementina é a primeira grande cantora negra que, pertencendo à escala menos procurada pelo disco e pelas rádios, tem acesso a esses meios de divulgação, mantendo-se íntegra em tôda sua pureza. Ela ajuda, indiretamente, naquilo que se poderia classificar de reabrasileiramento do brasileiro. Porque não se pode negar que é típico das culturas sub-desenvolvidas (como é a brasileira), a adoção indiscriminada e despoliciada de vícios de processos alheios à nossa gênese, o que vem desordenar o seu próprio processo evolutivo e promover a desnacionalização da única forma artística que distingue um povo: a sua música. Os meios de comunicação, por sua vez condicionados a um comercialismo desenfreado, dão pouca margem à matéria representada por Clementina. Teorias sofisticadas de movimentos que criticam nossa cultura sem apresentar alternativas ou proposições, se esqueceram de perceber — a exemplo do que acontece com o Jazz — o manancial que representa a música negróide brasileira. Essa matéria-prima, observada por um Edu e por um Milton Nascimento (falando apenas da mais nova geração), deveria, no entanto, servir como base para uma formulação mais profunda de uma música mais nacional e menos calcada no que é impôsto pelo mercado. Enfim: música totalmente aberta à invenção, mas desvinculada dos jargões que facilitam a venda — porque a linguagem do verdadeiro artista deve diferir da dos mercadores da música. Nacionalizar para internacionalizar, se bem explico. É a partir daí que os subsídios fornecidos por Clementina se tornam preciosos: os sambas de roda, as cantigas de reisado, incelenças, os jongos e caxambús que aprendeu, e tudo mais que canta com emoção e encanto irresistíveis — são bem mais do que um retrato vivo da música brasileira: são uma inesgotável fonte de conhecimento para aquêles que abordam a matéria popular como fonte de estudos. Lembro-me da confiança que me deram Turíbio dos Santos e Oscar Cáceres, quando descobri a grande partideira, numa tarde gloriosa na Taberna da Glória. Seu primeiro concêrto realizado com Turíbio Santos no Teatro Jovem em dezembro de 1964, foi acontecimento inigualável. O “Rosa de Ouro” (que marcou o retôrno de Aracy Côrtes e revelou Paulinho da Viola e um punhado de bons sambistas), haveria de consagrá-la definitivamente. Representou o Brasil nos festivais de Cannes e Dakar, acompanhada por Paulinho da Viola e Elton Medeiros, e na companhia ilustre de Elizeth Cardoso. Dois discos seus encontram-se editados na Europa, pela Pathé Marconi. E hoje, aos 67 anos de idade, vem outra vez registrar em disco (despojada dos conflitos suscitados por arranjos alienados) os cantos que fundamentam nossa história musical, abrindo caminhos de pesquisa para aquêles que ainda acreditam numa solução brasileira para nossa música.

HERMÍNIO BELLO DE CARVALHO1

  1. CARVALHO, Hermínio Bello de. Contracapa, In: clementina, cadê você? [S. l.]: Museu da Imagem e do Som – MIS 013, 1970. LP. (imagem JPEG 896 KB); ↩︎