Comprido, compositor da Mangueira que forma uma dupla famosa com Pelado e um trio, sempre forte na disputa dos sambas-enrêdo, com Hélio Turco, vai ficar sem compor sambas de terreiro êste ano para se dedicar inteiramente ao samba da escola para o carnaval do Quarto Centenário, pois quer ouvi-lo cantado na Avenida pelos passistas e pastôras da velha Estação Primeira.

— Neste ano, eu, Pelado e Hélio Turco temos que ganhar o carnaval. Por isso vou ficar quieto, tratando só de compor o samba-enrêdo. Não pretendo me meter em nenhum de terreiro, mas vou dar fôrça ao Pelado quando fôr preciso.

Para Anésio dos Santos, o Comprido, que chegou timidamente ma Mangueira em 54, compor samba-enrêdo não é mistério, pois dois dos mais bonitos da escola tiveram à sua participação — Casa-Grande e Senzala, de parceria com Zagaia e Leléu, e Histórias de um Prêto Velho1, com Hélio Turco e Pelado.

Nos seus anos de Mangueira, fêz um grande número de sambas da melhor qualidade, mas, inexplicâvelmente, poucos foram gravados. Fêz sambas de rua com sucesso como Bagunçar o Coreto de parceria com Padeirinho e um outro que diz assim: “Estamos aí/ Mangueira tem fortes raízes/ Não pode cair”, com o auxílio de Pelado. No entanto, há um que não pode ser esquecido e nêle Pelado e Comprido falam das alegrias do morro numa frase que resume tôda a ternura e o amor que a favela sofrida lhes transmitiu:

“Lugar igual a Mangueira não há.”

Comprido
Comprido
DONO DO MORRO

Quando eu cheguei na escola, em 54, Cartola era o dono do morro. Naquela época todo mundo tinha que cantar para êle ouvir e só entrava pra escola quem êle dissesse que era bom. Assim, cheguei lá com meu jeito meio tímido e tive que enfrentar os bons da época como Alfredo Português. Ninguém levava fé em mim, mas eu fiz um samba e agradei — conta Comprido.

A tradição de cantar para o velho Cartola ouvir continuou ainda mais dois anos, segundo Comprido, e, aos poucos, como o compositor enveIhecesse foi sendo deixada de lado. Comprido, em 56 fêz um samba em homenagem ao seu time, o Vasco, e teve que brigar com o pessoal da bateria que era Flamengo e não o tocava, dizendo assim:

— Não tá não. Vamos sair pra outro que êste não marca.

Apesar de tudo, diz Comprido que foi firmando seu prestígio no morro, pois fazia samba desde os 20 anos no Bloco Unidos do Arco.

— Posso me considerar um sambista genuíno, pois inclusive minha família é de carnavalescos. Meu avô foi fundador do Rancho Recreio das Flôres e, eu mesmo, andei algum tempo pelos ranchos, mas, como achava tudo muito lento, me dediquei inteiramente ao samba.

SAMBA DAVA PRISÃO

— Eu toco instrumentos de percussão desde menino, mas meu pai não deixava eu me meter em escolas de samba porque naquela época o negócio era na base de pernada — comenta Comprido. — Hoje o samba virou acontecimento social e evoluiu. Antigamente, por exemplo, branco não entrava em samba e quando aparecia um era sempre muito esquisito. Destoava.

Para Comprido, o samba autêntico começou no sofrimento dos escravos na senzala e com sacrifícios que a época obrigava. Depois, quem tocava violão na esquina era prêso como vagabundo, mas nada impediu que à música progredisse e tomasse a forma que hoje tem, conseguindo se impor “como um autêntico ritmo nacional contra os ritmos importados que são impingidos ao público”.

— Sambista agora pode andar de avião, mas muitos sofreram para que isso acontecesse — completa Comprido.

GRAVAÇÃO É PRIVILÉGIO

De tôda a série de boas músicas que compôs, Comprido só gravou até hoje três: Liberdade, Meu Destino e Histórias de um Prêto Velho. Casa-Grande e Senzala, talvez um dos mais importantes sambas-enrêdo da história do carnaval carioca, vai ser lançado por Jamelão.

Compositor e ritmista, Comprido não se dedica a nenhuma destas atividades profissionalmente, pois, segundo diz:

— O compositor de morro não pode ficar pensando em gravar, pois se quiser fazê-lo tem que dar parceria a uma meia dúzia de privilegiados que estão no métier. O ritmista, por sua vez, é pouco aproveitado e não tem a menor proteção, pois enquanto fora do Brasil se valorizam os artistas aqui desvalorizamos os brasileiros e valorizamos os estrangeiros.

Por isso, Comprido faz seus sambas na Mangueira, não se preocupa em gravá-los, satisfaz-se com o sucesso das músicas entre o pessoal de samba e trata de ganhar a vida como vendedor de uma fábrica de bebidas.

— Eu não gravo porque além de tudo ainda me falta tempo para trabalhar a música, já que tenho o meu trabalho e não posso falhar um dia para ficar procurando os cantores. Além disso, se a gente não se submeter a uma porção de coisas o disco fica na prateleira — contínua. — Uma vez eu gravei Liberdade2 em um LP da RCA, chamado Salve a Mangueira, só com gente boa como Cartola, Nélson Sargento, Marrêta, Alfredo Português, Cícero, Pelado e Nélson Cavaquinho. Até hoje não ouvi o rádio tocar nenhuma das músicas. Apenas, uma vez, uns amigos me disseram que tinham ouvido o meu samba e o do Marrêta, que é o grande Navio Negreiro3. Como se vê, assim não dá gôsto de gravar.

CASA-GRANDE E
SENZALA

Casa-Grande e Senzala, pela beleza que deu ao enrêdo da Mangueira, merece ser lembrado agora que será lançado por Jamelão4, numa das poucas gravações de Comprido. Sua letra é a seguinte:

“Prétos, escravos e senhores
Pelo mesmo ideal irmanados,
A desbravar
Os vastos rincões não conquistados
Procurando evoluir
Para unidos conseguir
A sua emancipação
Trabalhando nos canaviais
Mineração e cafêzais,
Antes do amanhecer
Já estavam de pé
Nos engenhos de açúcar
Ou peneirando café

II

Nos campos ou nas fazendas
Lutavam com galhardia
Consolidando
A sua soberania
E êsses bravos
Com ternura e amor
Esqueciam as lutas da vida
Em festas de raro esplendor
Nos salões elegantes
Dançavam sinhá-donas e senhores
E nas senzalas os escravos
Cantavam batucando seus tambores

BIS

Louvor a êste povo varonil
Que ajudou a construir
A riqueza do nosso Brasil

AMOR DE MANGUEIRA

Chegando em Mangueira, Comprido conheceu uma môça pernambucana chamada Maria, o que imediatamente aumentou o número de razões que tinha para se afeiçoar ao morro e à escola. Apesar de muito querida por todos, Maria nunca pôde ir aos ensaios da escola porque seu pai, severo, não deixava.

Comprido, com calma, esperou até que o dia chegou e a môça foi participar da filmagem de Gimba5 e os dois puderam conversar.

— Nós nos encontramos, eu expliquei à minha vida de sambista e ela compreendeu.

Os dois casaram e, agora, no Quarto Centenário, Maria vai sair pela primeira vez como pastôra da escola que sempre amou e nunca pôde defender no asfalto da Avenida, porque seu pai não deixava.

Dai pra frente, segundo Comprido, “o negócio é elevar cada vez mais o nome da Mangueira, porque não sou sambista pra me aproveitar disso e agora conto com Maria desfilando também”.6

  1. HISTÓRIA DE UM PRÊTO-VELHO, samba-enrêdo (64) de Pelado, Comprido e Hélio Turco, com Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, em disco “ESCOLA DE SAMBA ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA”, Musidisc Hi-Fi 2.102 (1964); ↩︎
  2. EXALTAÇÃO À LIBERDADE, samba de Comprido e Saara, com Nuno Veloso e côro, em disco “Salve MANGUEIRA”, RCA Victor BBL-1098 (1960); ↩︎
  3. CONTINENTE NEGREIRO, samba de Marrêta, com Nuno Veloso e côro, em disco “Salve MANGUEIRA”, RCA Victor BBL-1098 (1960); ↩︎
  4. CASA GRANDE E SENZALA, samba-enrêdo (62) de Zagaia, Comprido e Leléo, com Jamelão, em disco “SAMBA-ENREDO sucessos antológicos”, Continental 1 07 405 057 (1975); ↩︎
  5. Gimba, O Presidente dos Valentes 1963 – Um jovem favelado do morro carioca, querendo abandonar o mundo do crime, sucumbe à tenaz perseguição de cerco policial. Único filme de Flávio Rangel, com participação especial de Ruth de Souza e Paulo Emílio Salles Gomes. Baseado em peça de Gianfrancesco Guarnieri. ↩︎
  6. Transcrito de JORNAL DO BRASIL, Mauro Ivan, Juvenal Portella : COMPRIDO DEIXA O SAMBA DE TERREIRO PARA GANHAR ENREDO. (Rio de Janeiro, Cad. B p. 5, 20 ago. 1964). ↩︎