Ele "Bebeu" Mangueira - Carlos Cachaça. Foto: Rui Mendes, 29-8-11
Carlos Cachaça
Foto: Rui Mendes, 29-8-11

Carlos Cachaça, nasceu, cresceu e viveu somente no Morro de Mangueira. Sua obra musical traduziu seu tempo. Uma narrativa poética do que viveu. Sem fantasias, seus versos e melodias contam um pouco do que viu e sentiu. Ganhou o apelido de Cachaça para diferenciar de outros “Carlos” da turma e por causa de sua bebida preferida. Este mangueirense, apaixonado por Carnaval, zelava pela diversão e pelo trabalho. Trabalhou na Rede Ferroviária Federal, até se aposentar. Foram quarenta anos, (de 1925 a 1965), trabalhando diariamente. Ao lado de Cartola e Saturnino Gonçalves, pai da Dona Neuma, entre outros, fundou, em 1925, o Bloco dos Arengueiros, que mais tarde deu origem a Estação Primeira de Mangueira. Carlos Cachaça, foi o primeiro compositor a inserir elementos históricos nos sambas de enredo, o que é uma norma até hoje.

JB Especial – Carlos Cachaça ♪

Áudio do Programa JB Especial – Carlos Cachaça, transmitido em 1-8-82 na Rádio Jornal do Brasil AM 940 Khz, Rio de Janeiro.

Carlos Cachaça, sambista de corpo e alma

O compositor é o responsável pelo primeiro samba da Estação Primeira e de muitos outros sucessos que fez em parceria com Cartola e outros autores famosos. Também foi ele quem pediu a construção da primeira escola do Morro. Estas e muitas outras histórias do samba e de Mangueira, Carlos Cachaça conta com clareza, aos 82 anos, na tranquilidade de sua casa, cercado por muitas fotos, fantasias e gostosas recordações.

GIOVANNI FARIA

O gênio criativo de Cartola nunca esteve sozinho. Ao seu lado, durante muitos anos, marcou presença o indiscutível talento musical de outro legítimo mangueirense, nascido no início do século, quando ainda não se ouvia falar em samba no morro mais popular da cidade. Hoje, com 82 anos, Carlos Moreira de Castro, — humilde e pacato cidadão que em 1920, ao trocar a cerveja pela cachaça em uma feijoada na Praça XI herdou para sempre o apelido e nome artístico de Carlos Cachaça — lembra, saudoso, velhos carnavais, canções, histórias e amigos, especialmente o inesquecível parceiro Cartola.

No final do beco que segue entre casas de tijolos, onde disputam espaço crianças jogando bola e roupas estendidas no varal, desponta um sobrado de cores fortes, pequeno quintal à frente e varanda boa para repouso. Sentado no sofá da sala, repleta de discos e quadros em sua homenagem, Carlos Cachaça olha pela porta entreaberta e de imediato adverte:

— A casa é humilde, o dono também, mas podem chegar. Na Mangueira, quem chega é vindo.

Disposto, não aparentando nem de longe os mais de 80 anos “bem vividos”, acrescenta ele, Carlos Cachaça vai logo mostrando que está em dia com datas, nomes e acontecimentos de há muitos anos. Às vezes troca ou esquece. Pára, pensa, reflete mais uma vez e então conta com precisão. Como, por exemplo, a chegada do samba em Mangueira:

“O Morro da Mangueira era quieto, tranqüilo e não havia samba”

Carlos Cachaça

— O morro era quieto, tranqüilo e não havia samba. Em 1915, me lembro bem, Elói Antero Dias trouxe para cá sua canção “O padre diz miserinobis”, que iria permanecer durante muitos e muitos anos como um dos maiores sucessos da tradicional Festa da Penha. Naquela época, o samba surgia nas pequenas rodas. Aos poucos a semente foi crescendo — recorda-se.

E cresceu mesmo. Em 1928, a escola de samba foi fundada. Carlos Cachaça assegura que “‘está enganado quem pensa que a Mangueira surgiu em 1929”. Qualquer que seja o verdadeiro ano, a realidade é que a semente deu frutos.

— Nessa época, o samba começou a ter influência decisiva sobre a vida dos moradores do morro. De lá para cá, a Mangueira cresceu, ganhou fama e hoje faz parte da história de nosso País — se envaidece o compositor.

Cinco anos antes, mais precisamente em 1923, Carlos Cachaça já esquentava os pagodes no morro com sua primeira música, um sucesso caseiro intitulado “Não me deixaste ir”. Era apenas o limiar da brilhante carreira de um dos mais famosos compositores da escola de samba da Rua Visconde de Niterói.

Das suas mais de cem músicas compostas e cerca de 60 gravadas, Carlos Cachaça lembra com especial atenção de uma: o samba-enredo “Pudesse meu ideal”, composta com Cartola, que representou a Mangueira no primeiro desfile oficial das escoIas de samba, em 1932.

Ala dos compositores do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, 1946
Ala dos compositores do Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, 1946. Da esquerda para a direita, em pé: Quedinho, Adolfo Polonês, Nêgo, José Ramos, Geraldo da Pedra, Maçu, Cartola, Carlos Cachaça, Zagaia e Alfaiate. Sentados: Aluísio Dias, Edson, Odaléa (madrinha da ala dos compositores e filha de Edson), Zeca e Baiano.
Foto doada à Coleção Tinhorão/IMS pela pesquisadora Edinha Diniz durante visita ao Setor de Música do instituto em 26/06/2016

Um acontecimento histórico que marcou a vida de Carlos Cachaça foi a fundação da Ala dos Compositores da Mangueira, no final da década de 30. Ele, Cartola, Zagaia, Alfaiate, Alfredo Polonês, Geraldo da Pedra e vários outros amigos tiveram esse privilégio. Hoje, essa gente toda está guardada na memória de Carlos Cachaça e na fotografia que ele preserva com carinho na parede da sala.

De todos os compositores da Ala, Cartola seria aquele com quem Carlos Cachaça teria maior afinidade e comporia músicas eternas, como “Não quero mais amar a ninguém”, de 1936, que ele cantarola baixinho, lembrando, por certa, o velho sucesso alcançado. Outra canção gue ele considera imortal é “Alvorada” também em parceria com Cartola, gravada por Beth Carvalho.

Das muitas alegrias que Carlos Cachaça teve durante seus “82 anos bem vividos na Mangueira”, ele cita com especial saudosismo a inauguração da escola pública do morro, realizada pêlo Prefeito Pedro Ernesto, graças a um pedido seu.

“Eu sou raiz e defendo a manutenção da tradição das escolas de samba”

Carlos Cachaça

Funcionário aposentado da Central do Brasil, Carlos Cachaça ainda gasta grande parte do tempo compondo. Como verdadeira raiz do samba na Mangueira, ele se orgulha ao lembrar que a marginalização que sofria no mundo musical desapareceu juntamente com a projeção do samba e sua perfeita integração no cenário da música brasileira.

— Eu me sinto orgulhoso da projeção e respeito que eu e o samba ganhamos ao longo dos anos. Eu sei que vou morrer um dia, mas ele precisa resistir, eternizar-se.

Membro da Comissão de Frente da Mangueira — a roupa está exposta na sala, como um troféu —, Carlos Cachaça vê com bons olhos o sucesso da escola, depois de vários anos sem campeonato, força e brilho.

— Eu sou raiz e defendo uma manutenção da tradição das escolas de samba. Acho, porém que elas necessitam de boa direção, para que sejam mais atuantes.

Memória viva de praticamente toda a história da verde-rosa, Carlos Cachaça lamenta a pressa do tempo, que vai, aos poucos, levando os velhos parceiros da escola. “Gente que vai e muitas vezes leva junto um pedaço da história”, explica ele. Por isso, pede a Deus pela preservação do rico patrimônio humano dos que fizeram a história do samba do Morro da Mangueira, sua querida e doce morada1.

CARLOS CACHAÇA (1976, LP)

CARLOS CACHAÇA (1976, LP)

CARLOS CACHAÇA, (Continental). O disco ainda nem começou a ser gravado, mas já está ficando bom. A Continental chamou Pelão para produzir que chamou João de Aquino para fazer os arranjos. Cachaça está com 74 anos. Alvorada lá no morro, que beleza. Uma energia incrível. Raul Giudicelli não sabe o tamanho da besteira que diz quando escreve que ser pobre é uma pobreza. Quarta-feira, na Continental, a assinatura do contrato. Testemunhas: João de Aquino, Pelão, Hermínio Bello de Carvalho, Jorge Coutinho, Jonas Vieira e Aldir Blanc. – (Roberto Moura)2

Aos 74, o primeiro de Cachaça – Aos 74 de idade, só agora Carlos Cachaça lança, via Continental, seu primeiro Lp. Cachaça é considerado o mais autêntico dos composltores de morro. “Alvorada” (antes gravada por Clara Nunes), “Juramento falso” (velho sucesso de Orlando Silva) e “Quem me vê sorrindo” são as mais conheçidas do disco. O lançamento aconteceu, com todas as alegrias e biritas, na sede da Estação Primeira de Mangueira, comemorando os 50 anos de carreira do compositor. A produção é do craque Pelão e os arranjos e regências de João de Aquino. (Nelson Motta)3

N.º 21 CARLOS CACHAÇA

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Face A :

Todo Amor — Carlos Cachaça e Cartola
Quem me vê sorrindo — Carlos Cachaça e Cartola
Amor de Carnaval — Carlos Cachaça
Crueldade — Carlos Cachaça
Se Algum Dia — Carlos Cachaça
Não me deixaste ir ao Samba — Carlos Cachaça

Face B :

Harmonia em Mangueira — Carlos Cachaça
As Flores e os espinhos — Carlos Cachaça
Cabrocha — Carlos Cachaça
Juramento Falso — Carlos Cachaça
Clotilde — Carlos Cachaça
Alvorada — Carlos Cachaça, Cartola e Hermínio Bello de Carvalho

FICHA TÉCNICA

Produção fonográfica: Discos Continental
Direção de produção: J. C. Botezeli (Pelão)
Técnicos de som: Walter Oliveira e Jorge Teixeira
Corte: Milton Araújo
Montagem: Ercídio Zanatelli
Arranjos: João de Aquino
Regência: João de Aquino
Capa: José Maury de Barros
Fotos: Ynaia de Paula Souza Barros e Daryr Valério

Colaboradores:
Antonico Abóbora d´Águá, Mará, Jair, Valdecir Blanco, Dora, Minininha, Zica, Cartola, Cazuza, João Mucci, Jorge Candinho, Fernando, Frederico Matos de Sá, Carlito Maia.

Gravado nos Estúdios Hawai, Rio de Janeiro, nos dias 28, 29, 30 de junho e 1, 2, e 4 de julho de 1976.

ídolos mpb CULTURAL
DISCO É CULTURA
1-19-405-026

ENCARTE
Carlos Cachaça, Cartola e Natal do Bandolim
Carlos Cachaça, Cartola e Natal do Bandolim
Foto: Encarte do LP

Em 1887, foi construída a estação ferroviária de Mangueira. Em 1929, foi fundada a Estação Primeira de Mangueira. Em 1902 nasceu Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça. Filho de uma, pai da outra. Se sua vida tivesse que ser resumida em duas palavras, elas seriam samba e trem. Ou, como no verso de Fernando Pessoa, “sempre uma coisa defronte da outra”. O que se sabe: que Mangueira não chegou a ser o reduto militar que alguns historiadores registraram como explicação de seu povoamento. Que sua incrível comunidade é, muito mais, o produto natural do êxodo da Favela, do Querosene e do Salgueiro. Que tudo era quase um matagal desabitado e farto de mangueiras. Que, com a habitação, vieram os blocos. Com a fusão destes, a Estação Primeira. Que essa é a legítima expressão da verdade, testemunho pessoal de um dos seus construtores. Voz de Carlos Cachaça.
Carlos não foi um dos primeiros a chegar à Mangueira, simplesmente porque nunca chegou: já nasceu lá. É o primeiro grande bamba verde e rosa.
Todos os outros, quando chegaram por lá, já estavam indo morar nas terras do primeiro locador do morro, Tomás Martins, padrinho de Carlos Cachaça, que era quem assinava os recibos. Filho de ferroviário, Carlos Cachaça nasceu em 3 de agosto de 1902, na subida do morro, numa das casas que a Central do Brasil alugava aos seus funcionários, próximo á antiga ponte da Mangueira. Como o pai, ele também seria ferroviário e ligaria sua vida — de sambista, pingente social — aos trilhos e ao batuque do trem.
Antes, porém, de entrar nos trilhos, foi morar no morro, com Tomás Martins. O padrinho português, alugando terras para a construção de barracos e Carlos desfrutando de uma convivência importantíssima. Pelo contato íntimo com as coisas do samba e do morro. Pela gerência involuntária que era obrigado a exercer dos negócios do padrinho analfabeto.
Em 1914, Cachaça desceu o morro e foi para a avenida. Ali, Rio Branco, 133, fez o primário na Escola de Humanidades, mas não mudou o destino de sambista e ferroviário. Voltou para Mangueira, onde continuou sendo ninado pelo barulho do trem e acordado de madrugada por alguma confusão numa roda de samba mais próxima. Tinha 16 anos. Até os 24, foi tudo, não foi nada. Biscateou aqui e ali.
Quando o século XX entrou em sua segunda década, começavam a se processar as alterações que fariam com que Carlos Moreira de Castro se transformasse definitivamente em Carlos Cachaça. No ano da Semana de Arte Modernista, surgiu também o primeiro samba de Carlos Cachaça, cantado pelo morro todo — Não me Deixaste Ir ao samba em Mangueira. Não é de se desprezar o detalhe de que o morro, embora uma comunidade social só, conservava algumas divergências internas, especialmente no samba. Só de blocos, tinha 7: Tia Tomázia, Pérolas do Egito, Tia Fé, do Senhor Júlio, de Mestre Candinho, Príncipe das Matas e os Arengueiros.
Como o próprio título do primeiro samba esclarece, Cachaça falava do morro, não do seu bloco em particular. Por isso mesmo, todos os cantaram. Surgia espontaneamente a idéia de unificação, desabrochada 7 anos mais tarde.
Em 1926, Carlos Cachaça se tornou ferroviário e passou, no lado profissional, a seguir as pegadas do pai. No lado emocional, continuava ligado ao mundo do padrinho, aos barracos de Mangueira. Mais três anos, nascia a Estação Primeira de Mangueira.
Do bloco dos Arengueiros a que pertencia Carlos Cachaça, partiu o plano de transformar tudo numa coisa só. Uma reunião no Buraco Quente, na travessa Saião Lobato, 7, com a presença de Saturnino, Marcelino, Pedro Caim, Zé Espinguela, Manoel Sapateiro, Cartola, Candinho, Chico Porrão, Agenor de Castro, Gradim, Arturzinho, Maciste, Narciso, Pedro dos Santos e Pedro Camilo deu a luz a verde e rosa. Aí cabe um parágrafo especial: o lugar-comum faria com que Carlos Cachaça, se tivesse qualquer vaidade, incorporasse a posição em que vários historiadores da música popular o colocaram, isto é, dentro da reunião, como um dos fundadores. A sinceridade do compositor que era o orador da escola — e hoje é seu menestrel — impede a apropriação.
Carlos Cachaça, dos Arengueiros, uma das pessoas que mais lutou pela unificação sambística do morro, um dos mentores da fundação do Bloco-Escola, faz absoluta questão de dizer que, por uma razão qualquer, não pôde ir á reunião. Ele, que fora a todas as reuniões preliminares, que era um dos incentivadores do plano, não compareceu aquela reunião histórica. Isso não diminui seus méritos de fundador: aumenta a sua dimensão de homem.
Pouco tempo antes, novamente os Arengueiros, com um samba de Carlos, faziam o morro inteiro cantar. Outra exaltação ás coisas da Mangueira, sabiamente incluída neste elepê

Que harmonia lá em Mangueira
Que dá prazer para se brincar
O Laudelino no seu cavaco
Fazendo coisas de admirar
E de repente formam um enredo
Que até causa sensação
O Armandinho chega de flauta
Alípio sola no violão

Na nossa frente tem Angenor
José da Lúcia, tem Batelão
O réco-réco toca sozinho
E tropa toda bate na mão

Falta Otávio que eu não falei
Falta Aristides, falta “Martin”
Falta Simão na mesa de Umbanda
Falta Pedrinho no tamborim

Canta no coro Carlos Cachaça
Fazendo voz com o Expedito
Para terminar esta folia
Marcelino dá um apito

Carlos Cachaça e sua companheira Minininha (Clotilde) Foto: Encarte do LP
Carlos Cachaça e sua companheira Minininha (Clotilde)
Foto: Encarte do LP

Quer dizer: não há duvida de que os anos vinte foram decisivos, o primeiro samba, a descoberta da vocação, a carreira de ferroviário, a fundação da Mangueira. Todos acontecimentos desse período, com peso altíssimo no meio século que ainda viria. Na Mangueira, reconhecido sempre como um grande compositor, melodista inspirado, foram precisos mais alguns anos para que esses seus dotes fossem expostos ao alcance do ouvinte médio do Rio de Janeiro. A Mangueira continuava — continua, de certo modo — funcionando como comunidade fechada, costumes e tradições independentes do desenvolvimento da metrópole, embora tão perto dela, embora estivesse a primeira estação a somente 5 minutos da Central.
Mas, se o morro não ia aos artistas e compositores urbanos, esses iam ao morro. Foi isso que proporcionou a antológica gravação de Aracy de Almeida, 1936, para o Não Quero Mais Amar a Ninguém. Foi isso, também, que notificou á cidade a existência de Carlos Cachaça, compositor intuitivo, capaz de fazer sozinho as suas letras e músicas ou se unir em parcerias férteis como, por exemplo, Cartola ou Hermínio Bello de Carvalho (de que o samba Alvorada é possivelmente o mais brilhante resultado). Hoje, Não Quero Mais Amar a Ninguém conta com dezenas de regravações. Tem verso premiado e arquivado na Academia Brasileira de Letras (o alexandrino “semente de amor que sou desde nascença”).

Quando Leopold Stokowsky, á bordo do navio Uruguai, quis ouvir os compositores brasileiros mais importantes e gravar as suas coisas, o convite era extensivo a Carlos Cachaça. No dia marcado ele estava trabalhando. Na estrada de ferro. Do encontro que não houve, ficou uma histórica gravação de Quem me Vê Sorrindo, pelo próprio Leopold Stokowsky para a Columbia americana.
Ferroviário, trabalhou até 1965. Aí, parou e construiu a casa aonde mora. Mangueira, é claro. Sambista, não requereu nem consta que vá requerer aposentadoria. Mangueirense, andou uns tempos “licenciado” meio afastado, como o afilhado, concunhado e amigo Cartola. Agora, com a nova diretoria, os dois voltam rejuvenescidos, dispostos a encaminhar a Mangueira “para o seu verdadeiro destino”.
Mais que um elepê, no sentido tradicional, este é um registro da participação e permanência de Carlos Cachaça como figura de destaque de um dos maiores núcleos do samba, desde sua instituição como o gênero musical mais identificado com a alma carioca do povo brasileiro. Não pode, evidentemente, ser visto de outra perspectiva, sob ameaça de distorção do seu verdadeiro significado.
Com espírito de garimpeiro, Pelão, o produtor, percorreu os mais de 50 anos de samba de Carlos Cachaça, escolhendo cada faixa não só pelo seu conteúdo musical ou literário intrínseco, mas por suas inevitáveis implicações com a crônica da cidade do Rio de Janeiro. No mesmo clima, João de Aquino se despojou de seus conhecimentos técnicos e de sua cultura musical para que os arranjos deixassem cada música o mais perto possível da Mangueira. Na realização desta tarefa, eles contaram com o talento necessário de Raul de Barros (trombone), Copinha (flauta), Waldir de Paula (violão de 7 cordas), Canhoto (cavaquinho), Meira (violão) e Marçal, Elizeu, Jorginho, Gilson (ritmo). E alguma preciosidades como Por Te QuererSe Algum DiaCrueldadeTerra EstranhaClotilde e Amor que Nasce no Carnaval ficaram surpreendentemente parecidas com a cara de Carlos Cachaça.

Roberto Moura4

LETRAS

TODO AMOR — “Todo amor no princípio tem sabor / Tem perfume, tem odor, que embriaga o coração / Mas depois é uma taça incolor / Que só contém amargor, dessabor e maldição // Todo amor principia com beijos e risos / E no princípio forma um paraíso / E depois com o tempo um dos dois vem se arrepender / Um amor para gozar e outro para sofrer.”

QUEM ME VÊ SORRINDO — “Quem me vê sorrindo, pensa que estou alegre / O meu sorriso é por consolação / Porque sei conter, para ninguém ver / O pranto do meu coração // O pranto que eu perdi por esse amor, talvez / Não compreendestes, se eu disser não crês / Depois de derramado, ainda soluçando / Tornei-me alegre, estou cantando.”

AMOR DE CARNAVAL — “O amor que nasce no Carnaval / Não faz mal a ninguém / É alimentado com sorrisos / Barulhos de guizos e valor não tem // Passo estes três dias infernais / Desaparecem as fantasias / E também desaparece / Aquele amor que nasceu nos três dias // E depois só se conhece / Por acaso quem chamou / Pelos cantares brejeiros / Dançares maneiros que nos ensinou”

CRUELDADE — “Foste tu cruelmente / A causa crescente / Do meu padecer / Me levastes ao fim / Hoje passas por mim / Fingindo não me ver // Quem pratica a bondade // Recebe falsidade // De quem não merece / Quem bate nunca se lembra / Mas também quem apanha / Nunca se esquece // Se eu depois melhorar / Então podes voltar / Precisando outra vez / Quem já fez uma, faz duas / Não é muito difícil / Fazer as três”

SE ALGUM DIA — “Se algum dia eu souber / Que você vai deixar / Meu coração, que é todo seu / Em busca de outro amor / Não serei mais feliz / Porque você não quis / Depois serei, como fui seu / Da minha dor // Se a dor depois, por ingratidão / Também me deixar / Eu hei de chorar / Com muita razão / Por não ser feliz / E hei de dizer a quem perguntar / Prefiro morrer / Do que serve viver / Se a dor que cruzia / Também não me quis // Se me perguntarem a causa da dor / E dos meus queixumes / Eu terei ciúmes / Não responderei / Sentindo depois / Mesmo sofrendo, a causa da dor / Guardarei comigo / Em meu peito amigo / E pode voltar / A paz entre nós dois”

NÃO ME DEIXASTE IR AO SAMBA (NÃO DEIXASTES IR AO SAMBA) — “Não me deixastes ir ao samba em Mangueira / Mas tu saistes pra brincar no candomblé / Agora espero que tu me mandes embora / Amor tão rude, meu coração não faz fé // Eu não te deixo ir ao samba em Mangueira / Principalmente lá na casa do Arthurzinho / Eu tenho medo que tu fiques por lá / Porque a tropa toda sabe brincar direitinho”

HARMONIA EM MANGUEIRA — “Que harmonia lá em Mangueira / Que dá prazer para se brincar / O Laudilino no seu cavaco / Fazendo coisas de admirar // E de repente com algum enredo / Que até causa sensação / O Armandinho chega de flauta / Alípio sola no violão // Na nossa frente tem Angenor / José da Lúcia, tem Batelão / E o reco-reco toca sozinho / A tropa toda bate na mão // Falta Otávio, que eu não falei / Falta Aristides, falta Martim / Falta Simão na mesa de umbanda / Falta Pedrinho no tamborim // Canta no couro Carlos Cachaça / Fazendo voz pro Expedito / Pra terminar essa folia / O Marcelino dá um apito”

AS FLORES E OS ESPINHOS — “Enquanto houver flores no seu jardim você / Você não se lembra dos meus carinhos / Quando as flores murcharem eu quero ver você, você / Beijar espinhos // Mas sei que nesta vida tudo passa / E se esvai como a fumaça / A própria felicidade / E hoje por sonhares com a riqueza / Desprezas minha pobreza / Para que, tanta maldade”

CABROCHA — “Cabrocha, nunca foste rainha / Nem nunca te inscreveram / Em concursos de beleza como miss / Mas do samba brasileiro / Tens que ser a imperatriz / Coroada no estrangeiro”

JURAMENTO FALSO — “Jurar é mentir / Jurar é fingir / Jurar é pecado / E eu posso afirmar / Porque me juraram / Um amor sagrado / Depois que entreguei / O meu coração/ Tão crente, na jura / A mesma criatura / Jurou, não ter jurado // Não sei como pode / Ainda existir / Quem jura mentindo / A chorar fingindo / Que o tal juramento / Que faz é sincero / Jurar eu não quero / Mas se eu regesse / As leis do Senhor / Condenava e matava / Quem faz e não cumpre / As tais juras de amor // Já me arrependo / De ter condenado / A quem me jurou / E depois chorou / Fingindo verter / Um pranto sentido / Já tinha esquecido / Que a uma pessoa / Eu também jurei / E foi mentira a jura / Foi falsa impura / Porque nunca amei”

CLOTILDE (ENTRE DOIS MUNDOS) — “Contigo eu quero comparar / O céu o lindo céu / Em noites lindas / Em noites de luar / Porque em ti tudo é luz / Que resplende muito mais / Do que as terciárias / Estrelas de Jesus / Amor, quando sorris eu vejo / Dois rosários de pérolas / Como se fossem anjos / Protegendo teu beijo / Daí, nasce-me a inspiração / Formo tantos castelos / Poemas, versos, quérulos / Na imaginação // Pudesse com ela eu só viver / Perdão Senhor meu Deus / Meu Deus, meu Deus / Talvez inveja causaria / Aos anjos de Maria / Aos próprios anjos teus / Meu Deus / Perdão se blasfemo Senhor / Confesso-te temor / Nestes gritos profundos / Mas não / Não posso esquecê-la / Eu quero um dia tê-la / Para viver entre dois mundos”

ALVORADA — “Alvorada lá no morro que beleza / Ninguém chora não há tristeza / Ninguém sente dissabor / O sol colorindo / É tão lindo, é tão lindo / E a natureza sorrindo / Tingindo, tingindo // Você também me lembra a alvorada / Quando chega iluminando / Meus caminhos tão sem vida / Mas o que me resta / É tão pouco ou quase nada / Do que ir assim, vagando / Nesta estrada perdida”

Carlos Cachaça / Foto: Bruno Veiga/Argosfoto
Carlos Cachaça
Foto: Bruno Veiga/Argosfoto

Carlos Cachaça, em tempo de homenagens

MARCELO DE MELLO

Depois de festejar 89 anos com os amigos no último dia 2, ter um samba lançado em CD no Japão e receber a Medalha Pedro na Câmara de Vereadores do Rio, o poeta Carlos Cachaça vai ser homenagedo no lugar de que mais gosta no Mundo: a Mangueira.

Hoje, a partir das 21h, na quadra da escola (Rua Visconde de Niterói 1082), com entrada franca, os portelenses Monarco e Mauro Diniz vão cantar os sucessos de Carlos Cachaça e de seu parceiro Cartola. A idéia de homenageá-lo com o show “De Cartola a Carlos Cachaça e de Monarco a Mauro Diniz” foi da direção da Mangueira, já que o compositor é o único remanescente da geração de fundadores da escola.

Autor de “Homenagem”, o primeiro samba-enredo com que a verde e rosa desfilou, em 1934, Carlos Moreira de Castro nasceu e viveu a maior parte da sua vida na Mangueira. E. embora tenha construído uma casa no Engenho da Rainha meIhor do que a que vive na Mangueira, não pretende se mudar de lã tão cedo.

— Com ou sem dificuldade é aqui que eu pretendo morrer — diz o ex-operário da Central do Brasil, que ajudou na remodelação dos trilhos da linha férrea que passa em frente ao Morro da Mangueira.

Em fase de recuperação de um princípio de derrame, Carlos Cachaça diz que as homenagens transformam a tristeza pela saúde abalada em alegria. Tanto que esta noite ele vai abrir uma exceção ao repouso aconselhado pelo médico para ouvir (e cantar) na quadra o que fez de melhor nesses 89 anos.

Carlos Cachaça, em tempo de homenagens

No morro, toda a fonte de inspiração para sua poesia

Carlos Cachaça nunca saiu do Brasil mas diz com convicção que a Mangueira é o lugar de que mais gosta no Mundo. Se visitasse outros países, provavelmente não veria algum lugar que, apesar dos problemas comuns às favelas cariocas, inspirasse músicas obrigatórias em qualquer antologia de samba. A começar por “Alvorada”, dele próprio e de Hermínio Bello de Carvalho. Na música, o poeta diz que no morro, “Ninguém chora/ não há tristeza”.

— Aqui somos uma irmandade — diz.

Comparado ao que outros poetas já disseram da Mangueira, Carlos Cachaça pode ser considerado discreto em seu amor ao morro. Em Sei lá Mangueira, o porteIense Paulinho da Viola diz que o morro visto do alto “mais parece o céu no chão”. E Enéas Brito e Aloísio da Costa, autores de Exaltação à Mangueira, garantem que o cenário do morro com seus barracões de zinco “é uma beleza”.

Poucos poetas, porém, podem falar do morro melhor que Carlos Cachaça. Filho de um ferroviário, Carlos Moreira de Castro nasceu em 1902 em uma das casas construídas pela Estrada de Ferro Leopoldina para seus funcionários, no pé do morro, onde hoje está a Vila Olímpica da Mangueira. Aos 8 anos, foi morar no morro com seu padrinho, o comerciante português Tomás Martins, que alugava suas casas na Mangueira. Segundo Carlos Cachaça, seu padrinho foi o fundador do Morro da Mangueira.

Daquela época até hoje, Carlos pôde notar que o morro mudou bastante. Até a década de 50, quando compôs “Alvorada”, o cenário era mais natural, já que havia várias casas de sapê. Mas ainda continua a servir de inspiração ao poeta, que, em parceria com Wilson Moreira, compôs recentemente “A Mangueira é uma canção” e ainda pretende fazer mais duas músicas sobre o morro, por sugestão de amigos.

Data de fundação da escola: uma dúvida que ele não pode resolver

Antes de Cartola se mudar do Catete para a Mangueira, Carlos Cachaça já compunha sambas que tinham como tema a vida no morro. Um dos mais antigos de que ele se lembra de 1924, dizia assim: “Que harmonia/Lá em Mangueira/Que dá prazer/Para se brincar…”. Na fundação da Mangueira, porém, ele estava afastado do morro. Por isso, não pode esclarecer se a escola foi fundada em 28 de abril de 1928, a data oficial segundo a direção da escola, ou 1929, conforme se suspeita.

Quando se fala de como o samba começou no morro, porém, ele não tem dúvidas. Segundo Carlos Cachaça foi Eloy Antero Dias, de Madureira, que começou a tocar samba na Mangueira. Mas o primeiro a compor samba no morro foi ele próprio. Até a década de 20, não não se tocava na Mangueira o samba como se conhece hoje.

Ao compor “Homenagem”, considerado o primeiro samba-enredo da Mangueira, Cachaça ficou receioso que a menção a Castro Alves fosse mal aceita, já que os sambistas eram marginalizados. Mas sua intenção era mostrar que os moradores do morro eram bem informados sobre grandes escritores.

Naquela época, cada compositor sugeria o tema do samba de enredo, função que cabe hoje ao carnavalesco. Até deixar de compor para a escola, em 1949, os temas patrióticos predominavam em seus sambas: “Pátria querida”, “Vale do São Francisco”, em parceria com Cartola, e “Ciência e Arte”, gravada em CD no Japão.

Bebida predileta deu origem ao apelido que o consagrou

O apelido de Carlos Cachaça surgiu na casa do Tenente Couto, do Corpo de Bombeiros, onde ele se reunia aos domingos para comer feijoada. Com exceção de Carlos Moreira de Castro, todos que freqüentavam a casa do Tenente Couto bebiam cerveja preta como acompanhamento para a feijoada. Sempre que lhe ofereciam cerveja, Carlos recusava e dizia que preferia cachaça. Como havia mais dois Carlos no grupo, ele acabou conhecido como Carlos Cachaça. Depois do princípio de derrame, a cachaça ficou restrita ao apelido, mas o poeta está certo de que a bebida não lhe prejudicou.

— Para mim só fez bem. Pelo menos nunca tive problemas de fígado — brinca.

Viúvo de Dona Menininha, irmã de Dona Zica, tem três filhos: Tuco, José Carlos e Maria Inês, que mora no Engenho da Rainha, na casa construída pelo pai com o dinheiro ganho como funcionário da Rede Ferroviária Federal e, em menor parte, dos direitos autorais. Sua filha reservou o terceiro andar da apenas para ele mas o apego ao morro o impediu de se mudar.

— A Mangueira é a minha vida — resume o poeta.

Na sala de sua casa, quadros, diplomas e troféus lembram sua paixão pelo morro e pela escola. Desde o último dia 6, a decoração da casa foi acrescida da medalha que ganhou na Câmara dos Vereadores, uma coincidência feliz para o poeta, que foi amigo de Pedro Ernesto, prefeito do Rio na época em que a cidade era o Distrito Federal. Quando Pedro Ernesto esteve na prisão por participar da Intentona Comunista de 1935, Carlos Cachaça o visitou e, por ocasião da ida do então prefeito ao morro pediu a ele a construção de uma escola. O pedido foi satisfeito com a construção da Humberto de Campos, até hoje a única pública do morro5.

Sambas de Carlos Cachaça ♪

  1. FARIA, Giovanni. “Carlos Cachaça, sambista de corpo e alma”. O GLOBO (RJ) 2-1-85, MÉIER p.12. ↩︎
  2. MOURA, Roberto. “CARLOS CACHAÇA (Continental)”. O PASQUIM (RJ) 18 a 24-6-76, p.23. ↩︎
  3. MOTTA, Nelson. “Aos 74, o primeiro de Cachaça”. O GLOBO (RJ) 26-8-76, p.42. ↩︎
  4. MOURA, Roberto. Encarte, In: CARLOS CACHAÇA [S. l.]: Continental 1-19-405-026, 1976. LP. ↩︎
  5. MELLO, Marcelo de. “Carlos Cachaça, em tempo de homenagens”. O GLOBO (RJ) 14-8-91, MÉIER p.24-25. ↩︎