Texto de Jota Efegê

Naqueles idos de 1920 até quase 30, o samba ainda era espúrio. Era tido e havido como próprio de malandros, como cantoria de vagabundos. E a polícia, na sua finalidade precípua de zelar pela observância da boa ordem, perseguia-o, não lhe dava trégua. Perseguição tenaz, rigorosa, que os sambistas glosavam numa quadrinha por êles mesmos entoada: “Tava na roda do samba,/ quando polícia chegô./ Vamo acabá com êsse samba,/ que o seu delegado mandô.” Jamais se poderia supor, portanto, que êle viesse a ter festivais e bienais e que, constituindo escolas faustosas, se tornassem no principal atrativo do famoso carnaval carioca.

Houve, no entanto, um homem do samba, melhor dizendo, um macumbeiro ou “pai-de-santo”, o Zé Espinguela (na deturpação dê seu nome José Spinelli, também dado como José Gomes da Costa), que muito favoreceu a sua promoção. O samba, que se realizava irregularmente (ao “arrepio da lei”, para usar um têrmo dos juristas) nas casas das tias baianas, moradoras nas Ruas da Alfândega e Senador Pompeu, ou nos morros, assim como no arraial da Penha nos festejos de outubro, deve-lhe o incentivo, a aceitação que hoje desfruta. Levou-o para o seu “terreiro” na Rua Francisco Méier, no Engenho de Dentro e lá animou os sambistas realizando sessões e promovendo disputas e competições.

Zé Espinguela - Pai Alujá: "Sôdade do Cordão" - Desenho carvão, p&b [194-?] - Coleção: Arthur Ramos
Pai Alujá: “Sôdade do Cordão”
Desenho carvão, p&b [194-?] – Coleção: Arthur Ramos

Na Praça Onze

Depois de haver realizado muitas “brincadeiras” aos domingos, no seu “terreiro”, às quais sambistas da Mangueira (Cartola, Maçu, Saturnino), do Estácio (Ismael, Bidê, Rubens) e da Favela (Felícino, João Carteiro, Roxinho), não deixavam de comparecer, cada um mostrando seus sambas em competições amistosas, Zé Espinguela resolveu levar a efeito um concurso em que essa gente participaria disputando prêmios.

Então, num domingo de carnaval de 1930 ou 1931 (dúvida que preciosa informação prestada por Cartola deixou), os “blocos” e “embaixadas” — na denominação que antecedeu a de escola, agora estabelecida e mais importante — surgiram na Praça Onze de Junho precedidos de algumas baianas e com pequena bateria de tamborins, ganzás e cuícas. Não traziam bandeira, nem mestre-sala. Não mostravam enredos. Não ostentavam destaques. Vinha apenas o samba, sem luxo, na sua expressão rítmica e no gingado que provocava.

Um juiz absoluto

Sem preocupação de organizar um grupo de juízes para julgar ou apontar entre os cinco únicos concorrentes que, representando Mangueira, Bento Ribeiro, Portela, Estácio e Favela, iam entrar em confronto. Zé Espinguela foi o juiz absoluto. Êle, que havia comprado as taças que seriam os prêmios e as deixara em exposição prévia na vitrina de uma das casas comerciais da praça, foi quem decidiu a classificação dos vencedores.

Proclamou em 1.° lugar, como campeã, a Mangueira, indiferente aos protestos das demais participantes, que traziam entre seus componentes Heitor dos Prazeres, Paulo de Oliveira (da Portela), Ismael, Bernardo “Mãozinha”, Carijó e outros catretas do samba. Nascia, porém, assim a primeira competição entre grupos modestos “blocos“ “embaixadas”, que evoluíram e ostentariam, logo depois, a denominação de escolas.

Zé Espinguela

Simples competição de um sambista e “pai-de-santo” (ou apenas macumbeiro), realizada sem publicidade nos jornais, sem qualquer cunho oficial ou oficioso, êsse concurso não ficou anotado como o primeiro e, em conseqüência, não deu a Zé Espinguela, como merecia, o título de pioneiro de tais certames. Aparece sempre, invariavelmente — nas cronologias que historiam os desfiles das hoje faustosas e feéricas escolas de samba, originárias dos simples “blocos” e “embaixadas”, de 1930 ou 31 — o jornal “O Mundo Sportivo” como sendo o iniciador, e em 1932. Isto, por que, com melhor organização e amplo noticiário, a promoção deixou elementos de comprovação á posteridade.

Mas, mesmo sem a documentação cabal e eficiente dos registros da imprensa, o pioneirismo de Zé Espinguela é fácil de ser estabelecido em depoimentos de muitos sambistas da época. Alguns dêles, não só o Cartola, a quem se deve a informação aqui prestada, assim como Ismael Silva, Maçu (Marcelino), Juvenal Lopes (Lalau) e outros, ainda vivos, participantes do primeiro desfile competitivo do samba poderão atestar a primazia aqui proclamada. Êle mesmo, Zé Espinguela, certo de seu pioneirismo, numa entrevista que, mais tarde, concedeu ao matutino “A Nação”, declarou ter sido “o primeiro organizador de concursos entre as escolas de samba”1.

  1. EFEGÊ, Jota. “Espinguela, o que primeiro pôs o samba em competição” O GLOBO (RJ) 26-6-71, Matutina p.3. ↩︎