Estação Primeira
Mangueira 2019
Foto: Fabio Motta/AE

Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira (ou simplesmente Estação Primeira de Mangueira). Tradicional escola de samba da cidade do Rio de Janeiro. Tendo como cores o verde e o rosa, a Mangueira, detem 20 conquistas e ainda foi vice-campeã do carnaval carioca em 19 ocasiões. Foi fundada em 28 de abril de 1928, no Morro da Mangueira, próximo à região do Maracanã, pelos sambistas Carlos Cachaça, Cartola, Zé Espinguela, entre outros. Sua quadra está sediada na Rua Visconde de Niterói, no bairro do mesmo nome. A Mangueira foi a primeira escola que criou a ala de compositores, incluindo mulheres. Mantém, desde a sua fundação, uma única marcação, com o surdo de primeira, na sua bateria. Marcelino Claudino, o Maçu, introduziu as figuras do mestre-sala e da porta-bandeira no Carnaval. No símbolo da escola, o surdo representa o samba; os louros, as vitórias; a coroa, o bairro imperial de São Cristóvão; e as estrelas, os títulos. A escola ganhou um Super-Campeonato, exclusivo, oferecido no ano de 1984, na inauguração do Sambódromo. A Verde-e-Rosa fora a campeã da segunda-feira de carnaval, e a Portela do domingo. Três escolas foram para o sábado das campeãs disputar o Super-Campeonato, e a Mangueira foi aclamada a Super-Campeã com um desfile memorável em que a escola, ao chegar à Praça da Apoteose, retornou pela avenida, carregando uma multidão de foliões. Após parceria com a Xerox do Brasil e a Petrobras, na década de 1990 a Mangueira também montou uma Vila Olímpica e passou a disputar campeonatos esportivos, principalmente no Atletismo e no Basquete, onde disputou o Campeonato Brasileiro de Basquete Feminino.1

Mangueira: Tão grande que nem cabe explicação

Ela é sinônimo de povo. Povo que estremece quando a vê despontar na Candelária. Povo que canta junto até ficar rouco e aplaude até inchar as mãos. Que a acompanha depois do desfile e proclama justiça, quando não a vê em 1.° lugar no dia da apuração.

GRÊMIO RECREATIVO ESCOLA DE SAMBA ESTAÇÃO PRIMEIRAÊste o verdadeiro nome da famosa escola que todos preferem chamar simplesmente de Mangueira. É a Mangueira que, confundida com o bairro ou com o morro, tem servido de inspiração para melodias que se tornaram inesquecíveis. É a Mangueira, definida por um de seus compositores como Jequitibá do Samba, passando, por isso a ser chamada, por muitos, de “madeira de dar em doido” e que tem realmente, uma existência gloriosa como sonharam seus fundadores.

Mas glória maior da Mangueira é, como afirma seu presidente, Juvenal Lopes, fazer samba bonito para o povo, sem a preocupação principal da vitória nos desfiles em que pêse existir também a vontade de ganhar, “pois ninguém vai competir desinteressado pelo triunfo”. E nem a majestosa exibição que a escola fêz, ano passado, especialmente para a Rainha da Inglaterra, na Embaixada britânica, supera êste ponto de vista dos mangueirenses, que têm seu mundo naquele morro. São êsses detalhes, considerados pequenos pelos sambistas da Mangueira, que revelam a grandiosidade da escoIa — como diz Paulinho da Viola: “tão grande que nem cabe explicação”.

Aroldo Bonifácio
Fotos: Altifício Ferreira

Carlinhos, Pimpolho e Rogério, trio de pandeiristas que trouxe glórias para a Mangueira
Carlinhos, Pimpolho e Rogério, trio de pandeiristas que trouxe glórias para a Mangueira

Muitos blocos na origem

Existem controvérsias sôbre a data de fundação da Estação Primeira. Dados oficiais da escola dão conta de que foi a 28 de abril de 1928, mas o trabalho de alguns pesquisadores que se dedicam às coisas do samba revela ter sido um ano depois, isto é, 28 de abril de 1929, após ter surgido no Estácio a Deixa Falar.

A escola teve origem no bloco Arengueiros, fundado no morro de Mangueira, no carnaval de 1927. Mais tarde, o Arengueiros absorveu vários outros blocos existentes nas adjacências. Eram êles da Tia Tomázia, da Tia Fé, do Senhor Júlio, do Mestre Candinho e, ainda, o rancho Príncipes da Floresta. Os fundadores da Mangueira foram, entre outros, Saturnino Gonçalves, o Satur, seu primeiro presidente, Pedro Caim, Joaquim Bernardo, o Sapateiro, Marcelino José Claudino, o Masur, primeiro mestre-sala da escola e várias vêzes seu presidente, Angenor de Oliveira, o Cartola, Jorge Candinho, Francisco Ribeiro, o Chico Torrão, sócio n.°1 da escola, Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça, Artur Faria, Lauro dos Santos, o Gradim, e José Spinelli, idealizador do primeiro concurso de escolas de samba.

As côres verde e rosa que tiveram imediata aprovação, foram sugeridas por Cartola, em homenagem às pastorinhas e ranchos que, na época, existiam nas Laranjeiras, e que tinham aquelas côres. O nome Estação Primeira foi dado pelo povo da cidade, que costumava comparecer à Mangueira para ver Cartola cantar seu samba Chega de Demanda, solicitação para que fôsse terminado o litígio existente entre os sambistas de Mangueira e do Estácio. Para quem seguia de trem para gare D. Pedro II, Mangueira era a primeira estação em que o comboio fazia parada, advindo, daí, a denominação Estação Primeira. Quanto à designação de Mangueira para aquela estação, uns dizem que foi em razão da existência ali, da Fábrica de Chapéus Mangueira, enquanto outros afirmam que foi devido à grande quantidade de mangueiras existentes no morro.

Bons enredos, boas colocações

Participante de todos os desfiles carnavalescos, a Mangueira é detentora de onze títulos de campeã, sendo nove oficiais e dois extra. Dentro da série, foi uma vez tricampeã, com as vitórias conquistadas nos anos de 48, 49 e 50, quando o samba estava dividido e havia dois desfiles. A Império Serrano, participante do outro desfile, também foi campeã naqueles anos. Por três vezes a Estação Primeira foi bicampeã. Isto se deu nos carnavais de 32/33 (extras) 60/61 e 67/68. Isoladamente, vitoriou-se nos anos de 1940 e 1954, enquanto sua pior colocação nas competições foi o quarto lugar obtido nos desfiles de 1962 e 1965.

A escola, pelo que revelam seus arquivos — incompletos — apresentou-se nos desfiles com os mais sugestivos enredos, que lhe valeram sempre boas colocações. Em 1931, quando não houve competição a verde e rosa apresentou o tema Jardim da Mangueira, e nos dois anos seguintes conquistou os campeonatos extra, apresentando, respectivamente, A Floresta e Uma Segunda-Feira no Bonfim na Bahia. Em 1934, a Mangueira desfilou apenas para o povo, tendo a Recreio de Ramos sido a campeã. Com o enrêdo A Pátria, ficou no segundo lugar em 1935. No carnaval seguinte, a vitoriosa foi a Unidos da Tijuca. Os arquivos da Mangueira não dizem qual a sua colocação, o mesmo ocorrendo em relação ao desfile de 37, cuja campeã foi a Vizinha Faladeira. Em 38 não houve desfile, e em 39 a escola foi a segunda coloçada. Em 40 surgiu como campeã, sendo vice em 41. Os enredos dêsses anos são ignorados. A Vitória do Samba nas Américas, foi o tema apresentado em 42, mas a escola desconhece qual a classificação obtida. Em 43 foi vice-campeã, com enrêdo também ignorado. No carnaval do ano seguinte não houve desfile, e no de 45 a Mangueira apresentou-se com Nossa História, obtendo o segundo lugar. Do carnaval de 46, a escola nada sabe sôbre enrêdo e colocação, enquanto que do de 47 sabe, apenas, ter sido a segunda colocada. No carnaval de 48, que marcou a despedida de Cartola, a Estação Primeira voltou a ser campeã, com o enrêdo Vale do São Francisco, feito que repetiu em 49, com tema não lembrado, e também em 50, marcando o tricampeonato com Plano Salte.

A partir de então os arquivos da Mangueira foram atualizados e mostram que, em 51, com Unidade Nacional, foi a terceira classificada, colocação que repetiu em 52 e 53, com Gonçalves Dias e Caxias, respectivamente. No desfile de 54, mais uma vez vice-campeã, com o enrêdo Rio de Janeiro. De 55 a 59 a escola classificou-se no terceiro lugar, com os enredos Quatro Estações do Ano, Exaltação a Getúlio Vargas, Emancipação Nacional, Canção do Exílio e Brasil Através dos Tempos. No biênio 60/61, nôvo bicampeonato com Carnaval de Todos os Tempos (Glória ao Samba) e Rio Antigo, Casa Grande e Senzala foi o tema do carnaval de 62, tendo a escola se classificado em quatro lugar, com Exaltação à Bahia foi vice-campeã em 63. Desfilando em 64, com História de um Prêto Velho, ficou na terceira colocação, e na quarta, no ano seguinte, com o Rio Através dos Séculos. Uma das maiores injustiças dos desfiles do samba, aconteceu, em 1966, quando a Mangueira apresentou Exaltação a Villa-Lôbos e não passou do vice-campeonato. Mas em 67 foi a campeã, com Monteiro Lobato, bisando em 68 com Samba, Festa de um Povo. Apresentando, no carnaval passado Mercadores e Suas Tradições, perdeu o tricampeonato para o Salgueiro, ficando com a segunda colocação.

Neuma, um capítulo à parte

Quando se fala na ESTAÇÃO PRIMEIRA, não se pode omitir Neuma Gonçalves, pessoa cuja vida está intimamente ligada à escola. Filha de Saturnino Gonçalves, fundador e primeiro presidente da Mangueira, Neuma, desde os sete anos é figurante da verde e rosa. Dedicando-se à escola como se dedica à própria família, jamais se negou a colaborar, em qualquer sentido, quando solicitada. Estêve presente nas grandes vitórias da Mangueira e também nas horas amargas de decepção. Só não desfilou no carnaval de 1966, devido a morte, dias antes, de seu filho “Montinho”.

No morro, seu prestígio é incomparável, já tendo até recebido o título de Primeira Dama da Mangueira. Costumam dizer que sua casa é a Sala de Visita do Morro, não apenas pelo fácil acesso, mas, principalmente, pela fidalguia com que recebe a quantos ali aparecem.

Casada com Alcides Bernardino da Silva, outro mangueirense muito querido, Neuma é mãe de três filhas, tôdas excelentes sambistas. A mais velha, “Chininha”, é presidente da Ala das Impossíveis, composta por 18 graciosas mulatas e a mais bem organizada da escola. As mais novas, Cecy e Guezinha, já foram porta-bandeiras mirins. Atualmente fazem parte da ala de “Chininha”. Neuma tem ainda duas netas, filha de Cecy. A mais velha, com dois anos incompletos, já dá alguns passos como sambista e canta o samba-enrêdo que a escola apresentou no carnaval passado. A outra, nascida na última quarta-feira, deverá, como desejam os avós, ser também passista da verde e rosa.

Neuma dirige, no momento, o Departamento Feminino da escola, com a ajuda de Zica, espôsa de Cartola, e outras antigas pastôras. Na última sexta-feira, Neuma teve outra consagração no cenário do samba. Recebeu, no ginásio, do Maxwell, em festa promovida pela Acadêmicos do Salgueiro, a faixa de Madrinha dos Destaques das Escolas de Sambas.

OS FAMOSOS

Delegado e Neide, mestre-sala e porta-bandeira, estão entre os melhores e os mais famosos da cidade. Empunhando o pavilhão da ESTAÇÃO PRIMEIRA e dançando com garbo, sempre conseguiram pontos que contribuíram para as vitórias da escola.

Delegado, um prêto alto e magro, tem o corpo esguio como o velho Masur, primeiro mestre-sala da verde e rosa e que, em sua época, era a sensação entre os sambistas. Outros que o sucederam no pôsto também foram famosos e sempre. fizeram jus aos aplausos recebidos tanto na Praga Onze como em outros locais por onde desfilaram. Entre os principais sucessores de Masur e antecessores de Delegado estão Arlindo Conrado, Jorge Rasgado, Mário Malandrinho, Denezô, Arildo e outros.

Neide também reúne excepcionais qualidades para a missão que desempenha na escola. Não chega a ser bonita, mas agrada com sua simplicidade e simpatia, principalmente quando, rodopiando ou gingando o corpo com inconfundível cadência, mostra seu valor de sambista autêntica. Neide descende de uma tradicional família de porta-bandeiras, e foi treinada por sua tia Lina, segunda porta-bandeira da verde e rosa.

Poetas descem o morro

Uma das tradições da Mangueira está em sua Ala dos Compositores, que sempre revelou para o cenário da nossa música autênticos poetas, como é o caso de Cartola, um dos fundadores da escola. Batizado Angenor de Oliveira — é realmente Angenor e não Agenor como muitos pensam — Cartola, que depois de compor Divina Dama, foi, durante algum tempo, chamado, também de Divino, tem sido, através dos anos, com sua humildade, um espelho para várias gerações de compositores mangueirenses. Tendo mantido por alguns anos o Restaurante Zicartola, teve a seu crédito mais um grande serviço prestado à nossa música popular. Ajudado pela espôsa, o sambista montou, despretensiosamente, o estabelecimento cuja finalidade principal era reunir seus amigos em noites alegres onde, ao som de seu violão, todos pudessem cantar seus sambas e comer os quitutes caseiros preparados pela Zica.

O lugar, em pouco, sê tornou conhecido e famoso, revelando para o cenário musical cantores e compositores como Zé Kéti, Élton Medeiros, Paulinho da Viola, Zé Cruz, Nescarzinho, Jair do Cavaco e muitos outros.

Outro que continua sendo venerado pela Estação Primeira é Carlos Moreira de Castro, o “Carlos Cachaça”, contemporâneo de Cartola e também fundador da escola. Seus sambas, inclusive os de enrêdo, são tidos, por todos que militam na Mangueira como obras-primas. Também Lauro dos Santos, o Gradim, falecido há tempos, estêve em plano de igualdade com Cartola e Carlos Cachaça e foi, inclusive, fundador da escola.

Mantendo a tradição, a Mangueira vem, de ano para ano, revelando novos poetas, cujas melodias têm ficado famosas na cidade e no País. Das diversas safras, podemos citar, entre os que ainda vivem, José Ramos, atualmente representando a escola junto à Associação das Escolas de Samba do Estado da Guanabara, Nélson Cavaquinho, Brogogério, Leleu, Prêto Rico, Hélio Turco, Finca, Naciste, Ataliba, Zagaia, Xangô, Padeirinho, Darcy, Geraldo das Neves, Jurandir, Comprido, Sargento e muitos outros, Dos falecidos, além de Gradim, Zé da Zilda, mais conhecido na escola por “Zé Com Fome”, e que chegou a ser um dos mais famosos cartazes da radiofonia carioca, Geraldo Pereira, com suas Falsa Baiana e Isabel, “Zé Casadinho”, Cláudio de Oliveira e Alfredo Português não podem ser esquecidos.

ASCENSÃO COM JUVENAL

Além de Saturnino, primeiro presidente da escola, os que mais se destacaram na presidência da escola foram Hermes Rodrigues, também conhecido por “Ministrinho”, Roberto Ludolf Paulino, o “Robertinho da Cerâmica”, Manuel Fernandes, o “Beleléu” e Juvenal Lopes, atualmente no cargo. Na gestão Juvenal Lopes, a Mangueira teve uma ascensão vertiginosa. Reeleito uma vez, Juvenal deverá deixar o cargo em maio vindouro. Está esperando afastar-se da presidência com mais uma vitória. Escolheu, para o próximo carnaval, um tema “quente” do agrado de todos: Um Cântico à Natureza. O idealizador chama-se Augusto de Almeida, e é a pessoa que foi contratada pela escola para confeccionar as alegorias. Os figurinos, bem originais, são criação de Aélson. Administrativamente, a Mangueira já tomou tôdas as providências para o carnaval. Desde o último sábado, a Ala dos Compositores está apresentando os sambas do enrêdo, cuja escolha final deverá acontecer antes do fim do mês, quando então, a Estação Primeira iniciará, em definitivo, os preparativos para o superdesfile de 1970.2

MANGUEIRA, A ESCOLA RISONHA E FRANCA

De longe já se vê o morro, os barracos encravados na colina, na claridade mansa da tarde, calor sufocante do meio-dia ou nas luzes das noites de muitos sambas. A Mangueira está lá para quem quiser ver. Seus pobres nos barrancos de miséria e poesia não temem a curiosidade de quem passa confortàvelmente no seu carro em direção à Zona Norte. A Mangueira tem a sabedoria dos que já viveram muito e a glória de quem já foi cantada de mil modos.

Quando se pensa nesse morro que virou mito, chega-se quase a ouvir o som dos violões, cuícas, flautas e cavaquinhos de tantos poetas que lá viveram ou por lá passaram. E quem vai escrever sôbre ela se vê às voltas com uma dificuIdade maior: como evitar o tom de exaltação, a sub-literatura fácil dos chavões samba-miséria-gIória-no-asfalto? Como encontrar a essência dêsse lugar tão explorado não só pelos que o cantam como também pelos que vivem nêle? A melhor maneira de sentir Mangueira é ir lá, subir o morro numa hora qualquer, com o máximo de possível de despojamento para uma pessoa que vive na cidade. A verdade de Mangueira não está nos ensaios lotados de turistas ávidos de novidades. Ela está na gente simples que construiu uma comunidade em tôrno do samba. O mangueirense é um ser aberto por princípio. Sua desconfiança se desmancha na primeira cerveja tomada, numa tendinha. com um estrangeiro que êle nunca viu mas imagina irmão, podendo gozar do mesmo samba e sentir a mesma sensação de entrega à música e à alegria de viver. Viver, para quem mora em Mangueira, é muito difícil e perigoso. Mas quem mora no morro sofreu muito e, mesmo assim, viu que vale a pena. Sobretudo, quem pretende amar Mangueira deve evitar a atitude folclórica do hippie, que vai para Katmandou gozar as delícias do misticismo oriental, e não se detém sôbre a miséria em que vivem as populações da Ásia. Quem quiser conhecer e amar êsse morro sem limites nem fronteiras deve assumi-lo inteiro: com sua miséria e riqueza, com a alegria da música e o cheiro de seus esgotos, a paz das madrugadas de favela e a briga feroz pela sobrevivência.

Nenhum morro do Rio tem o que a gente encontra lá. O mito está em tudo, até na sua escola que tem a própria essência do carnaval carioca

Reportagem de ELIAS FONSECA

Mangueira quer dizer mulata. Mulata vestida de verde e rosa, enchendo a Avenida de ginga, mumunha e outras milongas mais. Mulata de Mangueira é fogo. Tanto faz: Aizita ou simplesmente Maria
Mangueira quer dizer mulata. Mulata vestida de verde e rosa, enchendo a Avenida de ginga, mumunha e outras milongas mais. Mulata de Mangueira é fogo. Tanto faz: Aizita ou simplesmente Maria. (Foto: Gigi)
Muitas vozes para um único samba

A maior parte da população masculina de Mangueira trabalha como operário, trabalhador braçal ou faz biscates. Um ou outro consegue estudar, como o neto de D. Virginia, que se formou em Engenharia. Mas isso são exceções, que provocam a admiração dos outros moradores, mas nunca vão chegar a ser regra geral.

O morro tem três escolas estaduais e uma do SESI, onde os filhos de todos fazem o primário. As crianças são um capítulo à parte; elas são livres. Andam quase que nuas, brincam com os cachorros pelo chão e não têm nenhuma cerimônia com os estranhos, E, sobretudo, já nascem com o micróbio do samba. Nos domingos à tarde, a quadra de ensaios lhes pertence. Sob os olhares dos pais ou de um parente, elas se realizam no brinquedo principal: o gingado. É nêle que aprendem as malandragens da vida e cultivam o espírito de improvisação, marca registrada do morro. Mangueira é a terra da invenção: quem não inventa se trumbica. Numa porta de barraco, uma mãe improvisou um berço para o filho num engradado de cerveja. Um mulato forte dobra uma esquina carregando latas d’água penduradas num pau, à maneira dos chineses. Êsse é o modo mais inteligente de enfrentar a dureza do dia-a-dia. As mulheres não são somente as rainhas do desfile na avenida: elas são uma peça vital para a vida do morro. Trabalham tanto ou mais do que os homens, em geral como empregadas domésticas, mas não se deixam absorver pelos problemas da patroa. Sua vida está no morro, uma delas mesmo diz:

— Nós temos uma vida social diferente: não temos lavadeiras, lavamos a roupa dos outros; não temos cozinheira, fazemos nossa própria comida. Mas temos um barraco que é só nosso quando chegamos em casa à noite. Os homens, apesar do machismo, reconhecem essa força feminina sem muitos problemas. Na época de bordar a fantasia, êles ajudam a bordar os paetês para ver sua companheira brilhar mais. Enquanto elas vão para a quadra ensaiar, os irmãos, primos, amigos, namorados ficam em casa — com uma cerveja gelada do lado — ajudando a fazer a fantasia. Em Mangueira todo mundo se ajuda. Se alguém fica na pior, vai morar na casa de um parente ou amigo enquanto a maré não melhora.

A figura feminina central de Mangueira — que reúne as caracteristicas básicas da mulher do morro — talvez seja D. Neuma. Diretora de harmonia da escola morando lá desde menina — seu pai foi um dos fundadores da Escola de Samba — ela é uma espécie de mãe-de-todos. Todo mundo a chama de tia e sua casa poderia ser o ideal comunitário que os hippies estão procurando: sempre aberta a qualquer hora para festejar com. os amigos ou “quebrar os galhos”. Seu telefone é um dos dez únicos que existem em Mangueira e nunca pára de tocar. As pessoas formam fila na varanda de cimento para fazer uma ligação. D. Neuma é uma espécie de ponte de ligação entre o mangueirense e o mundo. Ela sabe o que fazer para conseguir atestados, matricular crianças e internar alguém num hospital. Se alguma criança se perde no morro ou os pais saíram e não voltaram, pensa logo: “Vou à casa da tia que ela sempre tem uma comida quentinha para dar pra gente.”

Mangueira é a primeira escola de samba a comprar sua própria casa. Por isso o morro vai descer mais alegre, quando ouvir o apito de Xangô, no domingo de carnaval.

Na maior parte das vêzes, quem empurra a cancela de sua casa não está apenas pedindo ajuda: está querendo saber das novidades e desfrutar de um papo amigo. É ela quem conta que Mangueira é uma família só: “Somos todos parentes, aqui existe quebra-galho para tudo.”

Dos preparativos ao desfile

No fim do ano, começam os preparativos. A diretoria escolhe o enrêdo e contrata um figurinista. Os componentes das 62 alas — cêrca de 3.500 — vão em romaria receber os seus modelos, distribuídos de acôrdo as possibilidades econômicas de cada um. A porta-bandeira não sabe o figurino de sua colega de desfile: é segrêdo absoluto. “A gente aqui não gosta de ver a fantasia do outro. Só no dia.” As mulheres começam então a peregrinação ao sapateiro, à chapeleira, às lojas de fazenda. Êste ano está difícil, pois as lojas têm um estoque pequeno de fazendas para fantasia. A solução veio num improviso: comprar pano comum e cobrir tudo de bordados. E tem também o problema da subvenção estadual. As que a escola recebe só podem ser gastas no Rio. Assim, não existe a possibilidade de mandar comprar material em São Paulo. Como resultado, êste ano cabrochas e passistas estarão menos vestidas e mais bordadas.

Elas fazem questão de desmentir um conceito que todo mundo tem sôbre escola de samba; “‘É mentira que a gente passa fome pra desfilar. Compramos a fantasia com nosso trabalho, mas não nos sacrificamos tanto assim. Todo mundo ajuda e, em último caso, a gente compra à prestação.” Uma fantasia média êste ano vai custar entre Cr$ 800,00 e Cr$ 500,00. A confecção das fantasias se apressa à medida que o carnaval se aproxima. As agulhas trabalham mais depressa nas horas de folga, enquanto o tempo vai passando. Até uma pessoa estranha que vá visitar alguém está sujeita a acabar com agulha e linha nas mãos, ajudando a pregar vidrilhos. Tudo tem de estar pronto no dia do ensaio-geral, na quinta-feira antes do carnaval. Uma passista encontra a outra e pergunta pela fantasia. A resposta vem imediata: “Tô só esperando Xangô apitar.” Xangô é o diretor de harmonia. O seu apito, no domingo de carnaval, é a senha para todos descerem o morro fantasiados e se dirigirem à avenida. Essa descida é uma espécie de avant-premiàre do espetáculo final. Segurando cuidadosamente as roupas, todos descem lentamente. As casas e as pedras assistem espantadas à beleza de suas cabrochas, ontem carregando água na cabeça e hoje princesas.

Depois do desfile, um componente de escola de samba tem sempre uma maneira de fazer a sua própria pesquisa de opinião. O que está em jôgo é tão importante como o resultado da Loteria Esportiva: “A gente discute as falhas, pergunta pros outros quem desfilou mal ou bem, quem perdeu ponto. E já pode ter uma idéia de quem vai ganhar.” O sambista não tem muito tempo para descansar do desfile: fica sofrendo e discutindo até sexta-feira, dia da divulgação do resultado. Dona Neuma fica em casa chorando e ouvindo rádio; “Não tenho coragem de ir lá embaixo. Se perde, todo mundo vem pra cá chorar comigo. Se ganha, vem chorar do mesmo jeito. E como a cachaça: se faz frio, a gente toma pra esquentar, se está quente, toma pra esfriar. Aqui na Mangueira todo mundo chora. Se perde, chora de tristeza, se ganha, chora pra comemorar.”

Mangueira não dá cartaz a ninguém

Os puristas se preocupam com a invasão de pessoas estranhas desfilando nas escolas de samba. Mas em Mangueira não há discriminação: quem quiser desfilar que se apresente, entre pra sócio, ensaie, escolha sua ala. Há muitas entre as sessenta e duas alas: para os mais alegres, os mais retraídos, os mais ricos ou os mais pobres.

Um outro fenômeno preocupa os puristas: os artistas de rádio, cinema e televisão que desfilam para se promover. A resposta lúcida vem através de D. Neuma: — Quem quiser cartaz está procurando no lugar errado. Nós não damos cartaz a ninguém. Se os artistas saem, é porque gostam de sair. Annik Malvil desfila com a gente há cinco anos, mas nunca ficou conhecida como Annik de Mangueira. Com Gigi foi diferente. Ela chegou aqui mocinha, campeã de balé aquático e coisa e tal. Gostou do samba e quis sair. Saiu várias vêzes. Mas acho que aconteceu tudo com ela porque ela era de Ipanema. Quem botou o nome de Gigi da Mangueira não foi a gente: foi Carlos Machado. Se ela morasse aqui, não tinha acontecido nada disso. Se amanhã ou depois Teresa de Souza Campos resolvesse sair com a gente, não tinha o menor problema. Ela deixaria de ser o que é na vida social para ser uma componente da escola. Receberíamos com o mesmo carinho com que recebemos a mulher de um operário e ela sairia sambando do meu lado, do lado de todo mundo.

A vida em Mangueira é igual à dos outros lugares. Trabalha-se duro de segunda a sexta e diverte-se muito nos fins de semana, feriados e horas de folga. O consumo já chegou ao morro e mais da metade das donas-de-casa têm fogão a gás. Compram-se muitos aparelhos de rádio, televisão, eletrolas, pelos sistemas de crediário. Mas o consumo não impede o samba. Só se liga a televisão à noite, para ver os noticiários e as novelas, porque em Mangueira, felizmente, ainda existe o hábito da conversa. Na época de ensaios, as televisões estão quase sempre desligadas. Das festas fora do carnaval, a tradicional e mais bonita é a de Nossa Senhora da Glória, no Largo da Glória, no Buraco Quente. Lá fica a igreja da padroeira dos moradores da Estação Primeira.

No dia 15 de agôsto, todos se reúnem no Buraco Quente, fazem lista, compram fogos, velas, contratam padre, enfeitam a rua e fazem a procissão. As moças se vestem de azul-e-branco e os rapazes também. De manhã, o mais bonito é a primeira comunhão e o dia 15 é pràticamente oficializado como o “Dia da Primeira Comunhão”. Depois da procissão, à noite, é a festa da rapaziada, com muita cerveja e música. É quando surgem muitos namoros que terminam em casamento, pois casamento no morro é coisa muito séria.

Quando os pais da noiva têm dinheiro, é a coisa mais comentada de Mangueira. Eles fazem qualquer sacrifício para dar um festão. Casar no civil e no religioso é uma questão de orgulho. Não se usa cumprimento na igreja, só na casa da noiva. Os Casamentos em geral são no sábado e a noiva arruma seu quartinho desde quarta-feira e, desde então, já começa a ganhar presentes. Os vestidos são de cetim ou renda e, quando o pessoal vê que a moça vai casar direitinho, tem sempre alguém que faz questão de ajudar dando o vestido de presente. Viagem de núpcias não existe, porque depois da festa não sobra dinheiro para viajar. Quando dá meia-noite, a noiva tira o véu, joga o buquê e vai para seu baraco nôvo ou quarto. No casamento, a festa é sempre o mais importante. Só não tem festa mesmo quando a situação está muito ruim ou os noivos resolvem amigar de vez. Mas não é raro que, anos depois, acabem se casando no religioso e no civil, como Zica e Cartola fizeram.

Aniversário de 15 anos também é muito especial. Os pais fazem a roupa da filha toda branca, inclusive as pesas íntimas e podem até mandar rezar missa. Á noite, tem festinha na base do disco na vitrola, com primeira valsa e tudo. A sobrinha de Odete Pretinha trabalhava e estudava e, com quinze anos, conseguiu terminar o ginásio. A mãe mandou-a escolher entre a formatura com os colegas do ginásio ou a festa de quinze anos no morro. Ela escolheu o morro. A mãe chorou de emoção e sua festa foi das mais bonitas que já houve. Em têrmos de divertimento, não existe um calendário fixo de festas fora do carnaval. O mangueirense se diverte quando tem dinheiro e motivos de festejar. E êle já não tem medo de grandes confusões, pois Mangueira já não é mais um bairro violento, de brigas e mortes. Os hábitos foram se abrandando através dos anos e, hoje em dia, são relativamente poucos os marginais. Até o jôgo de ronda tradicional está sendo substituído pelo buraco e o biriba com a família. Nos fins de semana, muitos saem com a familia para passear na Quinta da Boa Vista ou vão fazer piqueniques nas praias da Zona Norte.

Comidas e geografia

No morro, o prato dia é angu com fubá, couve e torresmo. Feijão e arroz não é para todo mundo. E prato caro, só comido pelos privilegiados, a chamada classe média. Mas o angu à baiana pode ser bem feito e é sempre uma boa pedida. No entanto, o prato tradicional de Mangueira é a sopa de ervilhas. Não há barraco que não a faça, pelo menos duas vêzes na semana. Aos domingos, os moradores fazem questão de comer galinha, carne assada, rabada ou qualquer tipo de carne para, pelo menos nesse dia, tirarem o pé do lôdo. Só mesmo os que estiverem muito a perigo é que não capricham na bóia de domingo. O bôlo mais comum é o de farinha de trigo. Os em calda são feitos na época de São Cosme e Damião. Mangueira é um morro só — o dos Telégrafos — mas dividido em vários braços. Os nomes dos largos e ruas não foram invenção oficial. Êles nasceram da bôca do povo, que os criou de acôrdo com as características e as histórias do lugar. O sabor dêsses nomes é tão especial e não existe em nenhum outro lugar.

As principais partes do morro são Candelária, Buraco Quente e Pindura. O Buraco Quente é o principal, ao lado da quadra de ensaios, mais perto do asfalto da Av. Visconde de Niterói. Lá estão o Grotão, o Inferninho, o Dez, o Trinta, o Vinte e Um, o Largo da Glória. Na Candelária ficam Santo Antônio, Vacaria, Faria e Grotão, E no Pindura, mais para cima, estão a Curva da Cobra, a Fundação, o Largo do Depois te Explico, os Três Tombos.

Tôdos êsses lugares, essas histórias e vivências estão em risco de acabar. Com a transferência das outras favelas para conjuntos residenciais da Zona Norte, feita pelo Estado, pode ser que também chegue o dia de Mangueira se mudar, ou melhor, o dia do fim de Mangueira. Os moradores e sambistas não pensam muito no assunto, mas se preparam da melhor maneira possível. Como diz Dona Neuma:

— Acredito que êles não vão fazer isso conosco. A gente não quer de jeito nenhum. Já fizemos muitos pedidos ao Estado e faremos todos os apelos no sentido de urbanizarem o morro e nos deixarem aqui. Mas se algum dia nos mudarem, acaba a autenticidade. O samba, para ser autêntico, tem de continuar em Mangueira.3

Palácio do Samba

Palácio do Samba
CARNAVAL = GB (ESCOLA DE SAMBA DA MANGUEIRA) SET.73
Foto: Reinaldo Soares/Correio da Manhã
  1. ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2023. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Esta%C3%A7%C3%A3o_Primeira_de_Mangueira&oldid=66463668>. Acesso em: 22 ago. 2023. ↩︎
  2. Transcrito de: Correio da Manhã, Aroldo Bonifácio: Mangueira: Tão grande que nem cabe explicação. (Rio de Janeiro, 1.° Caderno p. 6, 24 nov. 69). ↩︎
  3. Transcrito de Revista Manchete, Elias Fonseca: MANGUEIRA, A ESCOLA RISONHA E FRANCA. (Rio de Janeiro, p. 42, 43, 44 e 45, 13 fev. 1971). ↩︎