Na hora que estou sambando, sinto uma coisa que a gente não pode descrever. É tão bom, uma coisa tão forte, que dá pra chorar, pra rir, pra sentir tudo ao mesmo tempo. Principalmente quando o público está ligado. Eu quando realmente piso na avenida, fico possuída, embriagada, me entrego toda.
Na hora que estou sambando, sinto uma coisa que a gente não pode descrever. É tão bom, uma coisa tão forte, que dá pra chorar, pra rir, pra sentir tudo ao mesmo tempo. Principalmente quando o público está ligado. Eu quando realmente piso na avenida, fico possuída, embriagada, me entrego toda.
UMA BAIANA DE AZUL E BRANCO

— A primeira participação que eu vi de escola de samba foi porque eu tinha uma babá, a Geralda, que saía na ala das baianas da Cartolinha de Caxias, que fazia a concentração ali no Tabuleiro da Baiana, onde hoje é o Largo da Carioca. Então, minha mãe me levava pra ver a Geralda. Eu ficava assim entusiasmada, mas não tinha ainda uma visão real do que era uma escola de samba, porque com essa idade a gente não sabe ainda distinguir bem. Depois disso, minha mãe começou a fazer parte de um grupo chamado Filhos de Gandhi, um grupo de baianos que faz aqui no Rio uma espécie de bloco da Bahia, sabe? Eles cantam candomblé e samba de roda. Aí, na segunda vez que fui assistir à saída deles, eu estava com uma fantasia de baiana, azul e branca, e quando me viram vestida daquele jeito e com as cores do bloco, falaram assim, “ah, como ela está bonitinha, vamos botá-la como mascote do grupo”. E eu saí com eles, quer dizer, essa foi a primeira vez que tomei conhecimento com bloco. Eu estava com 7 anos.

— Aos 16 anos fui assistir a um festival de folclore lá no Liceu Franco Brasileiro. Então vieram grupos de todo lugar do Brasil, pastorinhas, bumba-meu-boi, e a Guanabara mandou a Mangueira para representar o samba, né? Isso foi em 61, no fim do ano. Quando foi um determinado momento, comecei a conversar com um rapaz e tal, e no meio da conversa ele me falou: “puxa, você não gostaria de sair na Mangueira?” Eu disse que sim e aí ele pediu meu telefone. Quando cheguei a casa, ainda disse pra mamãe, “esse cara está me passando a cantada mais nova que já vi, pediu meu telefone pra mim sair na Mangueira”. Esse rapaz era o presidente da Escola, Roberto Paulino, que realmente me telefonou e eu saí no carnaval de 62, mas com uma fantasia de destaque: A Mais Linda Sinhá Moça da Bahia. Daí passei a freqüentar sempre a escola, mas não sambava, ficava só espiando. Um dia, durante um ensaio, eu estava distraída assim de pé, quando um passista amigo meu, o Jonas, passou e me puxou. No princípio dei aquela vacilada, mas já comecei a sambar. Aí eu creio que devo ter despertado a atenção ali, porque nessa época não havia nenhuma branca em escola de samba, eu fui a primeira.

SEU VERDADEIRO NOME MORREU

— De 63 para 64, minha vida mudou. Escondida do meu pai — daqueles homens de bater no peito e dizer que filha minha não pode e coisa e tal — fui fazer um teste com o Carlos Machado, e passei. Depois consegui convencer meu pai, pois o problema dele era justamente mulher pelada, assim, desnuda, e eu iria aparecer vestidíssima, com roupas maravilhosas, deslumbrantes mesmo, mas tudo muito vestida. Então ele não conseguiu ter aquele argumento que pretendia. Já ensaiando, um dia faltou uma moça que fazia um dos quadros importantes: depois da chegada do Getúlio Vargas, vinha um de batucada. Eu aí me ofereci pra ensaiar no lugar dela, só para ajudar. Mas senti que o Carlos Machado estava duvidando de mim. Nessa época ninguém ainda me conhecia, era notícia assim pequena, e quando percebi que ele ia dar aquela de me esnobar, sambei mesmo pra valer. Ele ficou deslumbrado com aquilo e me botou no quadro do O Teu Cabelo Não Nega. E falou: “realmente, vou te lançar como sambista.”

— Nesta época, eu ainda era Regina Helena. Quando o show estreou, fiz amizade lá dentro do Copacabana Palace com o Heli Halfoun. E ele me dizia assim: “puxa, mas eu acho o teu nome tão feio, sabe? Tão sem vida, tão sem … eu vou te dar outro nome”. E um dia, numa crônica, ele falou que tinha uma moça no Copacabana, que é da Escola de Samba de Mangueira, e que todo mundo chama de Gigi. Aquilo pegou de tal forma que dentro do próprio show eu já passei a ser chamada de Gigi da Mangueira. E dali pra frente não teve jeito mais. Eu, no princípio, achei horrível, sabe? Não sei, não é fácil a gente trocar assim de repente. E foi uma coisa muito rápida. Em um mês passei a ser uma pessoa conhecidíssima. Eu não era mais a Regina Helena, a Regina, de repente, morreu e passou a existir somente a Gigi. Aquilo me incomodava, porque eu era muito nova. Inclusive, entrei pro Carlos Machado com certidão de idade falsa, oh … eu não podia dizer isso, mas é verdade, eu entrei com uma certidão de 18 anos e tinha 17, mas também não me impuseram outro nome?

ANTES, O POVO LEVANTAVA

— Escola de Samba precisa daquele aplauso, daquele incentivo. A Mangueira, por exemplo, é uma escola que sempre consegue mexer com o público. Mas, esse ano, eles batiam palmas assim e paravam. Dava aquele branco enorme e aí batiam palmas outra vez. Outra coisa, também senti que muita gente não me conhecia, que olhavam pra mim assim e … será que ela é? será que não é? Aí me confundiam com outra pessoa, senti que ficavam assim na dúvida. Antes, quando eu entrava na avenida o povo levantava, gritava o meu nome, a arquibancada vinha abaixo quando eu passava. Mas esse ano esfriei um pouco por isso, ia esquentando mas, de repente, dava aquele branco. Pensei assim: o problema é comigo, com a Mangueira ou com o público? A coisa só melhorou quando fomos chegando perto da turma do sereno, aí o povo começou a cantar e a empolgar. Então eu digo, vai ver que os coitados foram jogados pra cá. Aliás, eu acho que o desfile é feito para o povo. Mas há muitos anos que o povo não assiste o desfile. Vejo muito é turista, porque o povo mesmo leva é cacetada, jatos dágua, cavalo por cima e tal. Isso eu vejo à beça. Esse ano, então, a polícia estava castigando mesmo.

Eu acho que o desfile é feito para o povo. Mas há muitos anos que o povo não assiste ao desfile.

— Não importa que a pessoa seja branca, preta, mulata ou japonesa, sendo sambista. Por isso eu acho que deve haver uma seleção. Esse ano, na Portela, por exemplo, eu tenho certeza de que a maioria das pessoas que prejudicaram o desfile estavam na turma do bicões, esses que só querem badalação. E geralmente eles não se contentam em sair no bolo, querem ser destaque, isso eu acho um absurdo. Por exemplo: o caso dessa moça que veio de fora, a Odile Rubirosa. É uma mulher sensacional, maravilhosa e tal, mas o quê que ela tem a ver com a Portela? Nada! Não samba, não fala nem o português bem falado. Quer dizer, apenas como uma atração para a escola? Eu acho que a Portela não precisa disso. Ela, por si só, é uma escola tão grandiosa, que realmente não precisa de Rubirosa nenhuma.

REGINA, SUPERMAMÃE

— O Wilson eu conheci em 64, na televisão. Eu fazia um programinha lá e ele era assistente do programa. Ele era assim um cara muito intransigente com as coisas e essa intransigência acabou nos aproximando, porque eu também era muito teimosa. E foi um namoro, noivado e casamento relâmpagos. Se bem que ele não quisesse ficar noivo, esse negócio todo. Mas um jornalista botou na coluna dele que eu havia ficado noiva. E, quando chegou de manhã, que meu pai foi pra Rede Ferroviária trabalhar, seus colegas começaram a lhe dar os parabéns pela filha que tinha ficado noiva. Então, ele ficou danado, voltou pra casa, fez aquele escarcéu todo e acabei ficando noiva de verdade.

— Eu sempre fui uma mãe assim um pouco chegada para a extremosa, exagerada, uma super-mãe. Olha, eu ainda não tinha pensado numa coisa, porque meus filhos agora é que estão com 7 e 8 anos. Mas, se um dia descobrir que estão fumando maconha, procurarei conversar muito com eles. Sabe, sou uma pessoa que não fumo, mas procuraria talvez entrar na deles pra ver se conseguiria tirá-los daquilo. Agora, se realmente fosse uma coisa irremediável, embora eu não creia que minha falta de atenção chegasse ao ponto de não ter remédio, eu acho que aceitaria exatamente o que eles quiseram. Eu sei que essa garotada toda está fumando maconha, meninos de 11, 12 anos, na primeira série do colégio e já viciados. Hoje em dia, até o pipoqueiro e o sorveteiro vendem.

— Olha, eu tenho tara, loucura pra botar uma mochila nas costas e sair viajando. Se meus filhos saíssem por aí, eu sei que não iam querer a chatona acompanhando do lado e tal, mas se eles realmente dessem uma de vamos botar a mochila nas costas, eu ia fazer tudo para ir também. Mas não pra ser aquela chata atrapalhando, porque eu amo fazer isso. E eu acho que contatos assim com mil gentes é o negócio mais bacana que tem. E não há melhor escola do que essa, a gente aprende tanto!

A MUTAÇÃO DE GIGI

Eu não reconheço mais nada da minha época. Eu não sou velha, pôxa, tenho 27 anos. Então, estou atuante. Mas eu não reconheço nessa garotada de 15, 16 anos mais nada do que eu fazia. É tudo tão diferente, mudado. É lógico que muita coisa mudou para melhor e muita para pior. Por exemplo: eu vejo coisas bem mais livres em termos assim de totalidade, uma liberdade assim mais sadia, até. Mas uma liberdade que também não é muito controlada. Eu acho que a juventude descambou pro vício e descambou demais. Se tivesse tombado para uma liberdade um pouco mais controlada, só daria certo.

— A causa principal disso é porque as pessoas não conversam, não falam. Um pai não conversa com o filho e, depois se eu, que tenho 27 anos, já sinto uma diferença enorme da minha época de adolescente que dirá minha mãe, que também é jovem e atual. Mas ela não vai entender nunca certas liberdades. Então, não há diálogo, realmente não há. Eu sei por exemplo, de casos de moças e rapazes que hoje querem se ajustar, querem vir a ter aquela conversa que não tiveram dois ou três anos. Mas não conseguem mais, não têm mais aquela forma, aquela maneira de chegar e conversar. Porque tudo mudou, os hábitos são outros, a vida já é outra e o que ficou, ficou muito para trás. E juventude já está 50 anos na frente1.

  1. “GIGI”. o jornal (RJ). 16-3-73, p.8. (imagem JPEG 1.16 MB); ↩︎