No centenário do frevo, historiadores revêem datas do surgimento da manifestação

Letícia Lins
RECIFE

Tema do desfile da Estação Primeira de Mangueira, patrimônio cultural e imaterial do Brasil e comemorando seu primeiro centenário, o frevo, na verdade, não tem só um século. Ele é anterior à data normalmente usada para demarcar seu surgimento. Do passado até os dias atuais, a manifestação pernambucana acumulou uma curiosa história. Uma história que tem a ver com a efervescência das massas e que acabou por se transformar em um símbolo de resistência popular. Em seus primórdios, ele chegou a ser repudiado pelas classes abastadas. Foi perseguido pelas autoridades que, por meio de um “esforço civilizatório”, tentaram abafá-lo para que cedesse lugar ao modelo europeu de carnaval. Nada adiantou. O frevo sobreviveu, expandiu-se e tornou-se a identidade maior do povo pernambucano.

No princípio, em meados do século XIX, bailes carnavalescos ocorriam em residências e teatros, animados por valsas, polcas, quadrilhas. Lá dentro, os ricos. Lá fora, os pobres com suas manifestações folclóricas, o maracatu, o bumba-meu-boi, a capoeira. Com as reformas urbanas em Recife do início do século XX, a burguesia começou a tomar conta das ruas também no carnaval. Fundava blocos de críticas e alegorias, usava carros enfeitados puxados a cavalo que conduziam palcos e até orquestras. E seus componentes recorriam a máscaras para garantir a liberdade.

Há mais de 100 anos 'frevendo' - Marcel Gautherot/livro "Frevo, 100 anos de folia"
Marcel Gautherot/livro “Frevo, 100 anos de folia”

A capoeira na origem dos passos do frevo

A festa, no entanto, tinha propósitos elitistas: sufocar os divertimentos populares. Ou seja, o carnaval de rua proposto era para ser assistido passivamente. Mas as classes trabalhadoras passaram a se organizar e fundar clubes. Com o passar dos anos, os grupos carnavalescos das classes abastadas começaram a minguar e em 1910, já estavam quase extintos. Mas a força do movimento popular só fazia crescer, ferver. Ou “frever”, como dizia então a população semi-analfalbeta que ganhava as ruas.

Informações como essas estão reunidas no livro “Frevo, 100 anos de Folia” (Ed. Timbro), de Camilo Cassoli, Luiz Augusto Falcão e Rodrigo Aguiar. O livro faz um passeio histórico, e iconográfico pelo frevo, reunindo uma série de curiosidades que vão da própria história da música e sua coreografia até as reações que ela provoca — ou provocou — em medalhões da cultura brasileira, como os escritores José Lins do Rego e Mário de Andrade, e o pintor Cândido Portinari. Até o cineasta Orson Welles foi um dia conhecer de perto o frevo. E fotógrafos como Pierre Verger, Jean Mazon e Marcel Gautherot estiveram em Recife para domunentá-lo.

A música resulta da fusão de marchas, quadrilhas, maxixes, polcas, tangos, dobrados e galopes executados por bandas militares que começaram a surgir na terceira década do século XX e se intensificaram com a proclamação da República. A mistura fazia ferver a massa popular no meio das ruas, quando o frevo “designava não o novo gênero musical, mas a agitação causada nos foliões”. O nome já corria na boca dos pernambucanos pelo menos três décadas antes de aparecer na imprensa. Segundo o historiador Evandro Rabelo, foi na edição de 9 de fevereiro de 1907 do Jornal Pequeno que a palavra “frevo” ganhou seu primeiro registro.

— O processo de formação do frevo é anterior a isso. A questão dos cem anos é mais uma convenção, porque é a primeira vez que a palavra aparece em um jornal. Como o frevo foi uma criação espontânea, fica dificil estabelecer uma datação histórica para um fenômeno como esse. Nas décadas anteriores, ele sofreu a repressão mais violenta. Quando chega ao jornal é sinal de que elites já estão começando a aceitá-lo — lembra a historiadora Rita de Cássia Barbosa de Araújo.

Com o crescimento de Recife, construção de fábricas e aumento do comércio, as classes trabalhadoras passaram a se organizar em clubes pedestres, formados em sua grande maioria por grupamentos profissionais: caiadores, varredores, lenhadores, verdureiros. O próprio Jornal Pequeno, na histórica edição de 7 de fevereiro de 1907, dá conta dos clubes Espanadores, Parteiras de São José, Costureiras de Sacos, Pescadores do Pontal, Empalhadores do Feitosa, entre outros. Conforme os autores, as bandas dos clubes pedestres tinham repertórios com marchas, polcas e tangos, mas depois passaram a ter suas próprias composições, sendo que o frevo “Vassourinhas”, criado no final do século XIX, foi o maior sucesso. Ainda hoje é executado no carnaval recifense.

Segundo o livro, o surgimento do “passo” (a coreografia do frevo) teria ocorrido século XIX. Está ligado às origens do ritmo musical, quando as duas principais bandas de música de Recife arrastavam multidões. Eram seguidas por grupos de capoeiristas. Os valentões, como eram chamados, acompanhavam a banda com a qual se identificavam, abrindo caminho com rasteiras e porretes e até marcando espaço com gritos de guerra. A rivalidade tornou-se tão grande, que em 1856 o governo proibiu a capoeira. Mas as capoeiristas continuaram se infiltrando no meio das bandas, muitas vezes com a conivência de músicos que os conheciam. Dos seus gestos, teria surgido o passo. A dança evoluiu no século XX, e hoje já somam mais de 120 os passos catralogados pelos especialistas.

Depois de ganhar a classe média, o ritmo frenético começou a ser reconhecido fora de Pernambuco. Isso nas primeiras décadas do século XX. Ao visitar Recife, o cineasta Orson Welles comparou-o a uma tarantela, em 1942. Três anos depois, o jornalista David Nasser escrevia, na revista “O Cruzeiro”, que a dança pernambucana era “antifascista, democrática e de movimentos livres”. No Nordeste, a música se espalhava e na voz de Jackson do Pandeiro. Entre 1941 e 1943, circulava na Paraíba o Palácio do Frevo, uma espécie de antepassado do trio elétrico. O ritmo e seus símbolos chegariam, também, aos estúdios do cinema americano, em filme estrelado por Carmen Miranda e, posteriormente, a composições de ícones da MPB, como Antônio Carlos Jobim1.

  1. LINS, Letícia. “Há mais de 100 anos ‘frevendo’”. O GLOBO (RJ), 2-2-08. Ciência p.32.. ↩︎