DEPARTAMENTO DE PESQUISA

“Ah, levanta a bandeira colorida / Pede passagem pra viver a vida”. Neide, Conceição ou Vilma, passando pela Avenida, é ela quem leva as côres da escola, recebe as mesuras do mestre-sala e os aplausos da multidão. Rainha por três noites, durante o ano ela é empregada doméstica ou operária de fábrica, e o máximo a que pode aspirar é o salário mínimo. Três noites para se vestir de pedrarias e brilho, o resto do ano para viver a realidade. É a porta-bandeira, aquela que não pode sambar com liberdade, e sim marchar tôda a dignidade, como pede a tradição das escolas. […]

NEIDE, A ALEGRIA

“Hoje não há ensaio não/ Na escola de samba./ O morro está triste,/ Pandeiro calado./ Maria da Penha,/ A porta-bandeira,/ Ateou fogo às vestes/ Por causa do namorado”.

Quem canta êste samba é Roberto Silva, o cantor predileto de Neide. Ela gosta da música, acha bonita e triste. Mas não acredita na história. Há 14 anos Neide é porta-bandeira da Estação Primeira. Casada, com dois filhos, conheceu Carlos, seu marido, na escola, quando já era porta-bandeira e êle da Ala dos Duques.

“Quando a gente é môça e se amarra num rapaz, êle sabe que em primeiro lugar vem o samba. Mesmo quando a gente já é dona de si, casada, e tem suas arrumações, o sujeiro tem que saber que o samba vale mais”.

Aí entra Seu Carlos, agora da Ala dos Diretores, dizendo que essas brigas acontecem mesmo é por causa de dinheiro. Chega o carnaval, o orçamento aperta, o casal nervoso, êle não quer que ela saia porque o dinheiro não dá mesmo, e às vezes a história termina mesmo em tragédia. Não há perigo que isso aconteça em casa de Neide. Tudo é planejado direitinho. Êle é escriturário, ela faz o serviço de casa. Às vezes uma parte mínima do orçamento vai para a escola, na fantasia dêle e do menino mais velho. E nada mais. Embora o amor à Mangueira seja enorme, Neide deixou de sair duas vêzes porque não quiseram pagar sua fantasia. Ficou trsite, mas sabia que no outro ano êles viriam buscá-la “porque o Delegado (mestre-sala) sem mim nunca fêz dez pontos”. Fora isso, mais uma questão de honra do que de dinheiro, não há nada neste mundo que a impeça de desfilar. “Quando meu pai estava doente, há um mês atrás, eu só pensava no carnaval, que eu não ia poder sair. Êle morreu, passei 20 dias afastada e depois voltei a ensaiar. Saindo ou não saindo êle ia mesmo morrer”.

Anderson, o filho mais velho, é mascote da Ala dos Aliados. Viva, a mais nova, está de coqueluche. “Acho que essa menina não sara pro carnaval. Mas não faz mal, ela fica na casa dos parentes. Fica bem”. A verdade é que ao chegar à Avenida, Neide esquece de tudo.

— Quando desfilei grávida de seis meses, comecei tudo errado. Minha fantasia não dava jeito no corpo, cheguei furiosa, quase chorando. Não falei com ninguém, eu que sou de chegar e começar com palhaçadas. Minha filha, na hora que deram o toque de alvorada, me transformei. Esqueci a raiva, parti com vontade, marquei dez pontos.

“Dona Raimunda foi a primeira porta-bandeira da escola, depois foi minha tia Lina, Nininha, Mocinha, tôdas casadas”. Para Neide, o lugar de porta-bandeira é um caso de família. “Tenho uma sobrinha que já está ensaiando para porta-bandeira. Quando ela estiver mais mocinha quero dar uma luz a ela. Aí eu saio. O lugar fica na família; como já foi de minha tia e meu, pode ser da minha sobrinha ou de minha filha, se Deus quiser”.

— A porta-estandarte é muito importante na escola. É uma responsabilidade muito grande. Morra quem morrer, ela tem que comparecer e dar o melhor. Tem que saber dançar, saber de tudo um pouco. Não pode cantar, que não fica bem. No corcurso passa a que dançar melhor. Sempre acontece aquela história de “eu queria ser”, mas aí o negócio é sambar. Tenho muita fé em mim, acho muito difícil perder. Se a Mangueira perdesse, nem sei o que faria. No ano passado, quando soube da vitória, estava em casa. Peguei minha filha no colo, saí correndo até o morro e já encontrei o bloco formado na rua”.

Neide tem fé no seu balanço e na sua escola, mas recorre sempre a São Cosme e São Damião, em assuntos de Mangueira ou de doença. “Tôda aflição minha falo em êles. Parece que estou conversando com gente mesmo”. Mas as aflições são poucas. Dentro do estreito mundo do casal, tudo tem seu devido lugar. A casa mínima já é um melhoramento, antes moravam no morro. Assim mesmo Neide tem saudade do barraco — “lá no morro a vida é movimentada. Preferia carregar água e morar lá do que aqui embaixo”.

A pequena sala que comporta um amontoado de coisas, além do altar à São Cosme e Damião, tem uma televisão sempre ligada. “Não gosto de novelas, não tenho paciência para seguir as histórias. Adoro mesmo é o telecatch. Quando o Ted Boy Marino luta, eu grito que nem uma doida”. A vida do casal gira em tôrno da Mangueira durante o ano inteiro. Neide diz que seu único divertimento “é propriamente o samba”, mas dá suas dançadinhas de iê-iê-iê também, de preferência ao som de Jerry Adriani.

Neide não tem nenhuma aspiração fora do samba, a não ser um pouco mais de confôrto em casa e muita saúde. Sua alegria é a Mangueira, o lugar de porta-bandeira. “Ás vêzes as pessoas me reconhecem na rua e perguntam se eu não sou a Neide da Mangueira. Nem conheço êles, mas adoro. Me sinto um pouco artista. Da Mangueira eu não saio, primeiro porque sou cria, segundo porque gosto mesmo da côr verde e rosa”1.

  1. PESQUISA, DEPARTAMENTO DE. “Levanta a bandeira de pesquisa”. JORNAL DO BRASIL (RJ), 24-2-68 caderno B, p.1. ↩︎