Mangueira quer dizer mulata. Mulata vestida de verde e rosa, enchendo a Avenida de ginga, mumunha e outras milongas mais. Mulata de Mangueira é fogo. Tanto faz: Aizita ou simplesmente Maria. 
Foto: Gigi/Manchete 1971
Mangueira quer dizer mulata. Mulata vestida de verde e rosa, enchendo a Avenida de ginga, mumunha e outras milongas mais. Mulata de Mangueira é fogo. Tanto faz: Aizita ou simplesmente Maria.
Foto: Gigi/Manchete 1971

De longe já se vê o morro, os barracos encravados na colina, na claridade mansa da tarde, calor sufocante do meio-dia ou nas luzes das noites de muitos sambas. A Mangueira está lá para quem quiser ver. Seus pobres nos barrancos de miséria e poesia não temem a curiosidade de quem passa confortàvelmente no seu carro em direção à Zona Norte. A Mangueira tem a sabedoria dos que já viveram muito e a glória de quem já foi cantada de mil modos.

Quando se pensa nesse morro que virou mito, chega-se quase a ouvir o som dos violões, cuícas, flautas e cavaquinhos de tantos poetas que lá viveram ou por lá passaram. E quem vai escrever sôbre ela se vê às voltas com uma dificuIdade maior: como evitar o tom de exaltação, a sub-literatura fácil dos chavões samba-miséria-gIória-no-asfalto? Como encontrar a essência dêsse lugar tão explorado não só pelos que o cantam como também pelos que vivem nêle? A melhor maneira de sentir Mangueira é ir lá, subir o morro numa hora qualquer, com o máximo de possível de despojamento para uma pessoa que vive na cidade. A verdade de Mangueira não está nos ensaios lotados de turistas ávidos de novidades. Ela está na gente simples que construiu uma comunidade em tôrno do samba. O mangueirense é um ser aberto por princípio. Sua desconfiança se desmancha na primeira cerveja tomada, numa tendinha. com um estrangeiro que êle nunca viu mas imagina irmão, podendo gozar do mesmo samba e sentir a mesma sensação de entrega à música e à alegria de viver. Viver, para quem mora em Mangueira, é muito difícil e perigoso. Mas quem mora no morro sofreu muito e, mesmo assim, viu que vale a pena. Sobretudo, quem pretende amar Mangueira deve evitar a atitude folclórica do hippie, que vai para Katmandou gozar as delícias do misticismo oriental, e não se detém sôbre a miséria em que vivem as populações da Ásia. Quem quiser conhecer e amar êsse morro sem limites nem fronteiras deve assumi-lo inteiro: com sua miséria e riqueza, com a alegria da música e o cheiro de seus esgotos, a paz das madrugadas de favela e a briga feroz pela sobrevivência.

Nenhum morro do Rio tem o que a gente encontra lá. O mito está em tudo, até na sua escola que tem a própria essência do carnaval carioca

Reportagem de ELIAS FONSECA

Muitas vozes para um único samba

A maior parte da população masculina de Mangueira trabalha como operário, trabalhador braçal ou faz biscates. Um ou outro consegue estudar, como o neto de D. Virginia, que se formou em Engenharia. Mas isso são exceções, que provocam a admiração dos outros moradores, mas nunca vão chegar a ser regra geral.

O morro tem três escolas estaduais e uma do SESI, onde os filhos de todos fazem o primário. As crianças são um capítulo à parte; elas são livres. Andam quase que nuas, brincam com os cachorros pelo chão e não têm nenhuma cerimônia com os estranhos, E, sobretudo, já nascem com o micróbio do samba. Nos domingos à tarde, a quadra de ensaios lhes pertence. Sob os olhares dos pais ou de um parente, elas se realizam no brinquedo principal: o gingado. É nêle que aprendem as malandragens da vida e cultivam o espírito de improvisação, marca registrada do morro. Mangueira é a terra da invenção: quem não inventa se trumbica. Numa porta de barraco, uma mãe improvisou um berço para o filho num engradado de cerveja. Um mulato forte dobra uma esquina carregando latas d’água penduradas num pau, à maneira dos chineses. Êsse é o modo mais inteligente de enfrentar a dureza do dia-a-dia. As mulheres não são somente as rainhas do desfile na avenida: elas são uma peça vital para a vida do morro. Trabalham tanto ou mais do que os homens, em geral como empregadas domésticas, mas não se deixam absorver pelos problemas da patroa. Sua vida está no morro, uma delas mesmo diz:

— Nós temos uma vida social diferente: não temos lavadeiras, lavamos a roupa dos outros; não temos cozinheira, fazemos nossa própria comida. Mas temos um barraco que é só nosso quando chegamos em casa à noite. Os homens, apesar do machismo, reconhecem essa força feminina sem muitos problemas. Na época de bordar a fantasia, êles ajudam a bordar os paetês para ver sua companheira brilhar mais. Enquanto elas vão para a quadra ensaiar, os irmãos, primos, amigos, namorados ficam em casa — com uma cerveja gelada do lado — ajudando a fazer a fantasia. Em Mangueira todo mundo se ajuda. Se alguém fica na pior, vai morar na casa de um parente ou amigo enquanto a maré não melhora.

A figura feminina central de Mangueira — que reúne as caracteristicas básicas da mulher do morro — talvez seja D. Neuma. Diretora de harmonia da escola morando lá desde menina — seu pai foi um dos fundadores da Escola de Samba — ela é uma espécie de mãe-de-todos. Todo mundo a chama de tia e sua casa poderia ser o ideal comunitário que os hippies estão procurando: sempre aberta a qualquer hora para festejar com. os amigos ou “quebrar os galhos”. Seu telefone é um dos dez únicos que existem em Mangueira e nunca pára de tocar. As pessoas formam fila na varanda de cimento para fazer uma ligação. D. Neuma é uma espécie de ponte de ligação entre o mangueirense e o mundo. Ela sabe o que fazer para conseguir atestados, matricular crianças e internar alguém num hospital. Se alguma criança se perde no morro ou os pais saíram e não voltaram, pensa logo: “Vou à casa da tia que ela sempre tem uma comida quentinha para dar pra gente.”

Mangueira é a primeira escola de samba a comprar sua própria casa. Por isso o morro vai descer mais alegre, quando ouvir o apito de Xangô, no domingo de carnaval.

Na maior parte das vêzes, quem empurra a cancela de sua casa não está apenas pedindo ajuda: está querendo saber das novidades e desfrutar de um papo amigo. É ela quem conta que Mangueira é uma família só: “Somos todos parentes, aqui existe quebra-galho para tudo.”

Dos preparativos ao desfile

No fim do ano, começam os preparativos. A diretoria escolhe o enrêdo e contrata um figurinista. Os componentes das 62 alas — cêrca de 3.500 — vão em romaria receber os seus modelos, distribuídos de acôrdo as possibilidades econômicas de cada um. A porta-bandeira não sabe o figurino de sua colega de desfile: é segrêdo absoluto. “A gente aqui não gosta de ver a fantasia do outro. Só no dia.” As mulheres começam então a peregrinação ao sapateiro, à chapeleira, às lojas de fazenda. Êste ano está difícil, pois as lojas têm um estoque pequeno de fazendas para fantasia. A solução veio num improviso: comprar pano comum e cobrir tudo de bordados. E tem também o problema da subvenção estadual. As que a escola recebe só podem ser gastas no Rio. Assim, não existe a possibilidade de mandar comprar material em São Paulo. Como resultado, êste ano cabrochas e passistas estarão menos vestidas e mais bordadas.

Elas fazem questão de desmentir um conceito que todo mundo tem sôbre escola de samba; “‘É mentira que a gente passa fome pra desfilar. Compramos a fantasia com nosso trabalho, mas não nos sacrificamos tanto assim. Todo mundo ajuda e, em último caso, a gente compra à prestação.” Uma fantasia média êste ano vai custar entre Cr$ 800,00 e Cr$ 500,00. A confecção das fantasias se apressa à medida que o carnaval se aproxima. As agulhas trabalham mais depressa nas horas de folga, enquanto o tempo vai passando. Até uma pessoa estranha que vá visitar alguém está sujeita a acabar com agulha e linha nas mãos, ajudando a pregar vidrilhos. Tudo tem de estar pronto no dia do ensaio-geral, na quinta-feira antes do carnaval. Uma passista encontra a outra e pergunta pela fantasia. A resposta vem imediata: “Tô só esperando Xangô apitar.” Xangô é o diretor de harmonia. O seu apito, no domingo de carnaval, é a senha para todos descerem o morro fantasiados e se dirigirem à avenida. Essa descida é uma espécie de avant-premiàre do espetáculo final. Segurando cuidadosamente as roupas, todos descem lentamente. As casas e as pedras assistem espantadas à beleza de suas cabrochas, ontem carregando água na cabeça e hoje princesas.

Depois do desfile, um componente de escola de samba tem sempre uma maneira de fazer a sua própria pesquisa de opinião. O que está em jôgo é tão importante como o resultado da Loteria Esportiva: “A gente discute as falhas, pergunta pros outros quem desfilou mal ou bem, quem perdeu ponto. E já pode ter uma idéia de quem vai ganhar.” O sambista não tem muito tempo para descansar do desfile: fica sofrendo e discutindo até sexta-feira, dia da divulgação do resultado. Dona Neuma fica em casa chorando e ouvindo rádio; “Não tenho coragem de ir lá embaixo. Se perde, todo mundo vem pra cá chorar comigo. Se ganha, vem chorar do mesmo jeito. E como a cachaça: se faz frio, a gente toma pra esquentar, se está quente, toma pra esfriar. Aqui na Mangueira todo mundo chora. Se perde, chora de tristeza, se ganha, chora pra comemorar.”

Mangueira não dá cartaz a ninguém

Os puristas se preocupam com a invasão de pessoas estranhas desfilando nas escolas de samba. Mas em Mangueira não há discriminação: quem quiser desfilar que se apresente, entre pra sócio, ensaie, escolha sua ala. Há muitas entre as sessenta e duas alas: para os mais alegres, os mais retraídos, os mais ricos ou os mais pobres.

Um outro fenômeno preocupa os puristas: os artistas de rádio, cinema e televisão que desfilam para se promover. A resposta lúcida vem através de D. Neuma: — Quem quiser cartaz está procurando no lugar errado. Nós não damos cartaz a ninguém. Se os artistas saem, é porque gostam de sair. Annik Malvil desfila com a gente há cinco anos, mas nunca ficou conhecida como Annik de Mangueira. Com Gigi foi diferente. Ela chegou aqui mocinha, campeã de balé aquático e coisa e tal. Gostou do samba e quis sair. Saiu várias vêzes. Mas acho que aconteceu tudo com ela porque ela era de Ipanema. Quem botou o nome de Gigi da Mangueira não foi a gente: foi Carlos Machado. Se ela morasse aqui, não tinha acontecido nada disso. Se amanhã ou depois Teresa de Souza Campos resolvesse sair com a gente, não tinha o menor problema. Ela deixaria de ser o que é na vida social para ser uma componente da escola. Receberíamos com o mesmo carinho com que recebemos a mulher de um operário e ela sairia sambando do meu lado, do lado de todo mundo.

A vida em Mangueira é igual à dos outros lugares. Trabalha-se duro de segunda a sexta e diverte-se muito nos fins de semana, feriados e horas de folga. O consumo já chegou ao morro e mais da metade das donas-de-casa têm fogão a gás. Compram-se muitos aparelhos de rádio, televisão, eletrolas, pelos sistemas de crediário. Mas o consumo não impede o samba. Só se liga a televisão à noite, para ver os noticiários e as novelas, porque em Mangueira, felizmente, ainda existe o hábito da conversa. Na época de ensaios, as televisões estão quase sempre desligadas. Das festas fora do carnaval, a tradicional e mais bonita é a de Nossa Senhora da Glória, no Largo da Glória, no Buraco Quente. Lá fica a igreja da padroeira dos moradores da Estação Primeira.

No dia 15 de agôsto, todos se reúnem no Buraco Quente, fazem lista, compram fogos, velas, contratam padre, enfeitam a rua e fazem a procissão. As moças se vestem de azul-e-branco e os rapazes também. De manhã, o mais bonito é a primeira comunhão e o dia 15 é pràticamente oficializado como o “Dia da Primeira Comunhão”. Depois da procissão, à noite, é a festa da rapaziada, com muita cerveja e música. É quando surgem muitos namoros que terminam em casamento, pois casamento no morro é coisa muito séria.

Quando os pais da noiva têm dinheiro, é a coisa mais comentada de Mangueira. Eles fazem qualquer sacrifício para dar um festão. Casar no civil e no religioso é uma questão de orgulho. Não se usa cumprimento na igreja, só na casa da noiva. Os Casamentos em geral são no sábado e a noiva arruma seu quartinho desde quarta-feira e, desde então, já começa a ganhar presentes. Os vestidos são de cetim ou renda e, quando o pessoal vê que a moça vai casar direitinho, tem sempre alguém que faz questão de ajudar dando o vestido de presente. Viagem de núpcias não existe, porque depois da festa não sobra dinheiro para viajar. Quando dá meia-noite, a noiva tira o véu, joga o buquê e vai para seu baraco nôvo ou quarto. No casamento, a festa é sempre o mais importante. Só não tem festa mesmo quando a situação está muito ruim ou os noivos resolvem amigar de vez. Mas não é raro que, anos depois, acabem se casando no religioso e no civil, como Zica e Cartola fizeram.

Aniversário de 15 anos também é muito especial. Os pais fazem a roupa da filha toda branca, inclusive as pesas íntimas e podem até mandar rezar missa. Á noite, tem festinha na base do disco na vitrola, com primeira valsa e tudo. A sobrinha de Odete Pretinha trabalhava e estudava e, com quinze anos, conseguiu terminar o ginásio. A mãe mandou-a escolher entre a formatura com os colegas do ginásio ou a festa de quinze anos no morro. Ela escolheu o morro. A mãe chorou de emoção e sua festa foi das mais bonitas que já houve. Em têrmos de divertimento, não existe um calendário fixo de festas fora do carnaval. O mangueirense se diverte quando tem dinheiro e motivos de festejar. E êle já não tem medo de grandes confusões, pois Mangueira já não é mais um bairro violento, de brigas e mortes. Os hábitos foram se abrandando através dos anos e, hoje em dia, são relativamente poucos os marginais. Até o jôgo de ronda tradicional está sendo substituído pelo buraco e o biriba com a família. Nos fins de semana, muitos saem com a familia para passear na Quinta da Boa Vista ou vão fazer piqueniques nas praias da Zona Norte.

Comidas e geografia

No morro, o prato dia é angu com fubá, couve e torresmo. Feijão e arroz não é para todo mundo. E prato caro, só comido pelos privilegiados, a chamada classe média. Mas o angu à baiana pode ser bem feito e é sempre uma boa pedida. No entanto, o prato tradicional de Mangueira é a sopa de ervilhas. Não há barraco que não a faça, pelo menos duas vêzes na semana. Aos domingos, os moradores fazem questão de comer galinha, carne assada, rabada ou qualquer tipo de carne para, pelo menos nesse dia, tirarem o pé do lôdo. Só mesmo os que estiverem muito a perigo é que não capricham na bóia de domingo. O bôlo mais comum é o de farinha de trigo. Os em calda são feitos na época de São Cosme e Damião. Mangueira é um morro só — o dos Telégrafos — mas dividido em vários braços. Os nomes dos largos e ruas não foram invenção oficial. Êles nasceram da bôca do povo, que os criou de acôrdo com as características e as histórias do lugar. O sabor dêsses nomes é tão especial e não existe em nenhum outro lugar.

As principais partes do morro são Candelária, Buraco Quente e Pindura. O Buraco Quente é o principal, ao lado da quadra de ensaios, mais perto do asfalto da Av. Visconde de Niterói. Lá estão o Grotão, o Inferninho, o Dez, o Trinta, o Vinte e Um, o Largo da Glória. Na Candelária ficam Santo Antônio, Vacaria, Faria e Grotão, E no Pindura, mais para cima, estão a Curva da Cobra, a Fundação, o Largo do Depois te Explico, os Três Tombos.

Tôdos êsses lugares, essas histórias e vivências estão em risco de acabar. Com a transferência das outras favelas para conjuntos residenciais da Zona Norte, feita pelo Estado, pode ser que também chegue o dia de Mangueira se mudar, ou melhor, o dia do fim de Mangueira. Os moradores e sambistas não pensam muito no assunto, mas se preparam da melhor maneira possível. Como diz Dona Neuma:

— Acredito que êles não vão fazer isso conosco. A gente não quer de jeito nenhum. Já fizemos muitos pedidos ao Estado e faremos todos os apelos no sentido de urbanizarem o morro e nos deixarem aqui. Mas se algum dia nos mudarem, acaba a autenticidade. O samba, para ser autêntico, tem de continuar em Mangueira.1

  1. FONSECA, Elias. “MANGUEIRA, A ESCOLA RISONHA E FRANCA”. Manchete (RJ) 13-2-71, p.42-43, 44-45. ↩︎