Ela é sinônimo de povo. Povo que estremece quando a vê despontar na Candelária. Povo que canta junto até ficar rouco e aplaude até inchar as mãos. Que a acompanha depois do desfile e proclama justiça, quando não a vê em 1.° lugar no dia da apuração.

GRÊMIO RECREATIVO ESCOLA DE SAMBA ESTAÇÃO PRIMEIRAÊste o verdadeiro nome da famosa escola que todos preferem chamar simplesmente de Mangueira. É a Mangueira que, confundida com o bairro ou com o morro, tem servido de inspiração para melodias que se tornaram inesquecíveis. É a Mangueira, definida por um de seus compositores como Jequitibá do Samba, passando, por isso a ser chamada, por muitos, de “madeira de dar em doido” e que tem realmente, uma existência gloriosa como sonharam seus fundadores.

Mas glória maior da Mangueira é, como afirma seu presidente, Juvenal Lopes, fazer samba bonito para o povo, sem a preocupação principal da vitória nos desfiles em que pêse existir também a vontade de ganhar, “pois ninguém vai competir desinteressado pelo triunfo”. E nem a majestosa exibição que a escola fêz, ano passado, especialmente para a Rainha da Inglaterra, na Embaixada britânica, supera êste ponto de vista dos mangueirenses, que têm seu mundo naquele morro. São êsses detalhes, considerados pequenos pelos sambistas da Mangueira, que revelam a grandiosidade da escoIa — como diz Paulinho da Viola: “tão grande que nem cabe explicação”.

Aroldo Bonifácio
Fotos: Altifício Ferreira

Carlinhos, Pimpolho e Rogério, trio de pandeiristas que trouxe glórias para a Mangueira
Carlinhos, Pimpolho e Rogério, trio de pandeiristas que trouxe glórias para a Mangueira

Muitos blocos na origem

Existem controvérsias sôbre a data de fundação da Estação Primeira. Dados oficiais da escola dão conta de que foi a 28 de abril de 1928, mas o trabalho de alguns pesquisadores que se dedicam às coisas do samba revela ter sido um ano depois, isto é, 28 de abril de 1929, após ter surgido no Estácio a Deixa Falar.

A escola teve origem no bloco Arengueiros, fundado no morro de Mangueira, no carnaval de 1927. Mais tarde, o Arengueiros absorveu vários outros blocos existentes nas adjacências. Eram êles da Tia Tomázia, da Tia Fé, do Senhor Júlio, do Mestre Candinho e, ainda, o rancho Príncipes da Floresta. Os fundadores da Mangueira foram, entre outros, Saturnino Gonçalves, o Satur, seu primeiro presidente, Pedro Caim, Joaquim Bernardo, o Sapateiro, Marcelino José Claudino, o Masur, primeiro mestre-sala da escola e várias vêzes seu presidente, Angenor de Oliveira, o Cartola, Jorge Candinho, Francisco Ribeiro, o Chico Torrão, sócio n.°1 da escola, Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça, Artur Faria, Lauro dos Santos, o Gradim, e José Spinelli, idealizador do primeiro concurso de escolas de samba.

As côres verde e rosa que tiveram imediata aprovação, foram sugeridas por Cartola, em homenagem às pastorinhas e ranchos que, na época, existiam nas Laranjeiras, e que tinham aquelas côres. O nome Estação Primeira foi dado pelo povo da cidade, que costumava comparecer à Mangueira para ver Cartola cantar seu samba Chega de Demanda, solicitação para que fôsse terminado o litígio existente entre os sambistas de Mangueira e do Estácio. Para quem seguia de trem para gare D. Pedro II, Mangueira era a primeira estação em que o comboio fazia parada, advindo, daí, a denominação Estação Primeira. Quanto à designação de Mangueira para aquela estação, uns dizem que foi em razão da existência ali, da Fábrica de Chapéus Mangueira, enquanto outros afirmam que foi devido à grande quantidade de mangueiras existentes no morro.

Bons enredos, boas colocações

Participante de todos os desfiles carnavalescos, a Mangueira é detentora de onze títulos de campeã, sendo nove oficiais e dois extra. Dentro da série, foi uma vez tricampeã, com as vitórias conquistadas nos anos de 48, 49 e 50, quando o samba estava dividido e havia dois desfiles. A Império Serrano, participante do outro desfile, também foi campeã naqueles anos. Por três vezes a Estação Primeira foi bicampeã. Isto se deu nos carnavais de 32/33 (extras) 60/61 e 67/68. Isoladamente, vitoriou-se nos anos de 1940 e 1954, enquanto sua pior colocação nas competições foi o quarto lugar obtido nos desfiles de 1962 e 1965.

A escola, pelo que revelam seus arquivos — incompletos — apresentou-se nos desfiles com os mais sugestivos enredos, que lhe valeram sempre boas colocações. Em 1931, quando não houve competição a verde e rosa apresentou o tema Jardim da Mangueira, e nos dois anos seguintes conquistou os campeonatos extra, apresentando, respectivamente, A Floresta e Uma Segunda-Feira no Bonfim na Bahia. Em 1934, a Mangueira desfilou apenas para o povo, tendo a Recreio de Ramos sido a campeã. Com o enrêdo A Pátria, ficou no segundo lugar em 1935. No carnaval seguinte, a vitoriosa foi a Unidos da Tijuca. Os arquivos da Mangueira não dizem qual a sua colocação, o mesmo ocorrendo em relação ao desfile de 37, cuja campeã foi a Vizinha Faladeira. Em 38 não houve desfile, e em 39 a escola foi a segunda coloçada. Em 40 surgiu como campeã, sendo vice em 41. Os enredos dêsses anos são ignorados. A Vitória do Samba nas Américas, foi o tema apresentado em 42, mas a escola desconhece qual a classificação obtida. Em 43 foi vice-campeã, com enrêdo também ignorado. No carnaval do ano seguinte não houve desfile, e no de 45 a Mangueira apresentou-se com Nossa História, obtendo o segundo lugar. Do carnaval de 46, a escola nada sabe sôbre enrêdo e colocação, enquanto que do de 47 sabe, apenas, ter sido a segunda colocada. No carnaval de 48, que marcou a despedida de Cartola, a Estação Primeira voltou a ser campeã, com o enrêdo Vale do São Francisco, feito que repetiu em 49, com tema não lembrado, e também em 50, marcando o tricampeonato com Plano Salte.

A partir de então os arquivos da Mangueira foram atualizados e mostram que, em 51, com Unidade Nacional, foi a terceira classificada, colocação que repetiu em 52 e 53, com Gonçalves Dias e Caxias, respectivamente. No desfile de 54, mais uma vez vice-campeã, com o enrêdo Rio de Janeiro. De 55 a 59 a escola classificou-se no terceiro lugar, com os enredos Quatro Estações do Ano, Exaltação a Getúlio Vargas, Emancipação Nacional, Canção do Exílio e Brasil Através dos Tempos. No biênio 60/61, nôvo bicampeonato com Carnaval de Todos os Tempos (Glória ao Samba) e Rio Antigo, Casa Grande e Senzala foi o tema do carnaval de 62, tendo a escola se classificado em quatro lugar, com Exaltação à Bahia foi vice-campeã em 63. Desfilando em 64, com História de um Prêto Velho, ficou na terceira colocação, e na quarta, no ano seguinte, com o Rio Através dos Séculos. Uma das maiores injustiças dos desfiles do samba, aconteceu, em 1966, quando a Mangueira apresentou Exaltação a Villa-Lôbos e não passou do vice-campeonato. Mas em 67 foi a campeã, com Monteiro Lobato, bisando em 68 com Samba, Festa de um Povo. Apresentando, no carnaval passado Mercadores e Suas Tradições, perdeu o tricampeonato para o Salgueiro, ficando com a segunda colocação.

Neuma
Neuma

Neuma, um capítulo à parte

Quando se fala na ESTAÇÃO PRIMEIRA, não se pode omitir Neuma Gonçalves, pessoa cuja vida está intimamente ligada à escola. Filha de Saturnino Gonçalves, fundador e primeiro presidente da Mangueira, Neuma, desde os sete anos é figurante da verde e rosa. Dedicando-se à escola como se dedica à própria família, jamais se negou a colaborar, em qualquer sentido, quando solicitada. Estêve presente nas grandes vitórias da Mangueira e também nas horas amargas de decepção. Só não desfilou no carnaval de 1966, devido a morte, dias antes, de seu filho “Montinho”.

No morro, seu prestígio é incomparável, já tendo até recebido o título de Primeira Dama da Mangueira. Costumam dizer que sua casa é a Sala de Visita do Morro, não apenas pelo fácil acesso, mas, principalmente, pela fidalguia com que recebe a quantos ali aparecem.

Casada com Alcides Bernardino da Silva, outro mangueirense muito querido, Neuma é mãe de três filhas, tôdas excelentes sambistas. A mais velha, “Chininha”, é presidente da Ala das Impossíveis, composta por 18 graciosas mulatas e a mais bem organizada da escola. As mais novas, Cecy e Guezinha, já foram porta-bandeiras mirins. Atualmente fazem parte da ala de “Chininha”. Neuma tem ainda duas netas, filha de Cecy. A mais velha, com dois anos incompletos, já dá alguns passos como sambista e canta o samba-enrêdo que a escola apresentou no carnaval passado. A outra, nascida na última quarta-feira, deverá, como desejam os avós, ser também passista da verde e rosa.

Neuma dirige, no momento, o Departamento Feminino da escola, com a ajuda de Zica, espôsa de Cartola, e outras antigas pastôras. Na última sexta-feira, Neuma teve outra consagração no cenário do samba. Recebeu, no ginásio, do Maxwell, em festa promovida pela Acadêmicos do Salgueiro, a faixa de Madrinha dos Destaques das Escolas de Sambas.

OS FAMOSOS

Delegado e Neide, mestre-sala e porta-bandeira, estão entre os melhores e os mais famosos da cidade. Empunhando o pavilhão da ESTAÇÃO PRIMEIRA e dançando com garbo, sempre conseguiram pontos que contribuíram para as vitórias da escola.

Delegado, um prêto alto e magro, tem o corpo esguio como o velho Masur, primeiro mestre-sala da verde e rosa e que, em sua época, era a sensação entre os sambistas. Outros que o sucederam no pôsto também foram famosos e sempre. fizeram jus aos aplausos recebidos tanto na Praga Onze como em outros locais por onde desfilaram. Entre os principais sucessores de Masur e antecessores de Delegado estão Arlindo Conrado, Jorge Rasgado, Mário Malandrinho, Denezô, Arildo e outros.

Neide também reúne excepcionais qualidades para a missão que desempenha na escola. Não chega a ser bonita, mas agrada com sua simplicidade e simpatia, principalmente quando, rodopiando ou gingando o corpo com inconfundível cadência, mostra seu valor de sambista autêntica. Neide descende de uma tradicional família de porta-bandeiras, e foi treinada por sua tia Lina, segunda porta-bandeira da verde e rosa.

Poetas descem o morro

Uma das tradições da Mangueira está em sua Ala dos Compositores, que sempre revelou para o cenário da nossa música autênticos poetas, como é o caso de Cartola, um dos fundadores da escola. Batizado Angenor de Oliveira — é realmente Angenor e não Agenor como muitos pensam — Cartola, que depois de compor Divina Dama, foi, durante algum tempo, chamado, também de Divino, tem sido, através dos anos, com sua humildade, um espelho para várias gerações de compositores mangueirenses. Tendo mantido por alguns anos o Restaurante Zicartola, teve a seu crédito mais um grande serviço prestado à nossa música popular. Ajudado pela espôsa, o sambista montou, despretensiosamente, o estabelecimento cuja finalidade principal era reunir seus amigos em noites alegres onde, ao som de seu violão, todos pudessem cantar seus sambas e comer os quitutes caseiros preparados pela Zica.

O lugar, em pouco, sê tornou conhecido e famoso, revelando para o cenário musical cantores e compositores como Zé Kéti, Élton Medeiros, Paulinho da Viola, Zé Cruz, Nescarzinho, Jair do Cavaco e muitos outros.

Outro que continua sendo venerado pela Estação Primeira é Carlos Moreira de Castro, o “Carlos Cachaça”, contemporâneo de Cartola e também fundador da escola. Seus sambas, inclusive os de enrêdo, são tidos, por todos que militam na Mangueira como obras-primas. Também Lauro dos Santos, o Gradim, falecido há tempos, estêve em plano de igualdade com Cartola e Carlos Cachaça e foi, inclusive, fundador da escola.

Mantendo a tradição, a Mangueira vem, de ano para ano, revelando novos poetas, cujas melodias têm ficado famosas na cidade e no País. Das diversas safras, podemos citar, entre os que ainda vivem, José Ramos, atualmente representando a escola junto à Associação das Escolas de Samba do Estado da Guanabara, Nélson Cavaquinho, Brogogério, Leleu, Prêto Rico, Hélio Turco, Finca, Naciste, Ataliba, Zagaia, Xangô, Padeirinho, Darcy, Geraldo das Neves, Jurandir, Comprido, Sargento e muitos outros, Dos falecidos, além de Gradim, Zé da Zilda, mais conhecido na escola por “Zé Com Fome”, e que chegou a ser um dos mais famosos cartazes da radiofonia carioca, Geraldo Pereira, com suas Falsa Baiana e Isabel, “Zé Casadinho”, Cláudio de Oliveira e Alfredo Português não podem ser esquecidos.

ASCENSÃO COM JUVENAL

Além de Saturnino, primeiro presidente da escola, os que mais se destacaram na presidência da escola foram Hermes Rodrigues, também conhecido por “Ministrinho”, Roberto Ludolf Paulino, o “Robertinho da Cerâmica”, Manuel Fernandes, o “Beleléu” e Juvenal Lopes, atualmente no cargo. Na gestão Juvenal Lopes, a Mangueira teve uma ascensão vertiginosa. Reeleito uma vez, Juvenal deverá deixar o cargo em maio vindouro. Está esperando afastar-se da presidência com mais uma vitória. Escolheu, para o próximo carnaval, um tema “quente” do agrado de todos: Um Cântico à Natureza. O idealizador chama-se Augusto de Almeida, e é a pessoa que foi contratada pela escola para confeccionar as alegorias. Os figurinos, bem originais, são criação de Aélson. Administrativamente, a Mangueira já tomou tôdas as providências para o carnaval. Desde o último sábado, a Ala dos Compositores está apresentando os sambas do enrêdo, cuja escolha final deverá acontecer antes do fim do mês, quando então, a Estação Primeira iniciará, em definitivo, os preparativos para o superdesfile de 19701.

  1. BONIFÁCIO, Aroldo. “Mangueira: Tão grande que nem cabe explicação” Correio da Manhã (RJ) 24-11-69, 1.° Caderno p.6. ↩︎