JOSÉ CARLOS REGO

Todo o tempo que eu viver / Só me fascina você / Mangueira / Dei-lhe toda juventude / Fiz por você o que pude / Mangueira / Continuam nossas lutas / Podam-se galhos, colhem-se as frutas / E outra vez se semeia / E no fim desse labor, surge um compositor / Jovem de grande valor / Com o mesmo sangue na veia.* Cantando esses versos Cartola, a porta-bandeira Neide definiu a razão porque há 23 anos empunha, sob quaisquer circunstâncias, o pavilhão da Estação Primeira de Mangueira, nos desfiles oficiais. Agora, com mais disposição do que nunca, ela está se preparando para pontificar no desfile de 78. No último carnaval sofreu um golpe: pela primeira vez não conquistou os pontos máximos de sua categoria, fato inédito na vida de quem se fez conhecida como a porta-bandeira Nota-10.

Neide: tudo muito simples, os pés no chão, muita alegria e nenhum prospecto
Neide: tudo muito simples, os pés no chão, muita alegria e nenhum prospecto

Excluindo o verde-rosa, o espectador atento pode identificar à distância a Mangueira em desfile: por uma característica inimitável de sua primeira porta-bandeira. Dançando, Neide consegue manter o pano da bandeira em linha horizontal, num equilíbrio tão correto, capaz de permitir a leitura clara do conjunto de pequenas letras gravadas no pavilhão: GRES Estação Primeira de Mangueira. Nessa habilidade, por certo, ela não encontrou rival. Neide não sabe como consegue esse efeito, mas chama a atenção para o fato de que a paixão pela coreografia da dança de porta-bandeira começou muito cedo em sua vida. Na própria família, Dona Lina — sua tia — que hoje sai na Ala das Baianas, foi a primeira porta-bandeira e seu Arlindo, o primeiro mestre-sala da Mangueira.

Nascida no Buraco-Quente — uma das subdivisões do morro — Neide gosta de lembrar que o barraco de sua mãe localiza-se justamente atrás da primeira sede da Mangueira, que é uma casa de apenas um salão, jirau de madeira, construída há mais de 30 anos e de pé até hoje.

— Eu já trazia aquele negócio no sangue mesmo. Com minha tia brilhando lá no samba, a coisa criou raiz. Eu tinha cinco anos, meu pai perdeu o juízo e minha mãe ficou, então com uns 30 contratos de roupa para lavar. Era a família toda na tina e no engomador, ali, cantando ou ouvindo samba. Naquele tempo, a escola se reunia a qualquer hora. Chegava uma visita importante lá no morro, o seu Cartola reunia as pastoras, mais o ritmo e o samba estava formado. Tudo muito simples, pé no chão, mas com muita alegria. Não havia prospectos, a gente aprendia as letras dos sambas ouvindo os compositores. Praticamente se começava a cantar o samba quando aprendia a falar.

— O samba era nossa família, o passeio, o cinema, o namorado. Era tudo o que a gente tinha mesmo de alegria já no morro.

Neide Sant´Ana, 37 anos, dois filhos, Wanderson (18 anos), um bom passista, mas muito ligado em soul; e Silvia (12 anos), que segundo a mãe já mostra alguma bossa de porta-bandeira. Na verdade, confidencia ela, considera-se mesmo é uma boa motorista-de-fogão pois, cozinhando no Mercado da CADEG,* em Benfica, é que mantém a família. O fato de ter de acordar, diariamente, às 4h30m da manhã para abrir o seu Bar da Neide, nunca a impediu de manter as atividades de porta-bandeira.

— Quase sempre a gente sai é mesmo direto do samba — diz — toma um banho frio e café bem forte. Vai em frente que não tem nada não. No tempo da sede velha nem se dormia lá em casa, porque o ritmo ficava praticamente junto do quarto. Isso ficou na massa do sangue.

Com 14 anos, ela começou a segurar o mastro da bandeira na escola enquanto Dona Nininha — que sucedeu sua tia como primeira porta-bandeira — descansava. Começou então a ganhar jeito e o diretor de harmonia — Xangô — passou a observá-la, diante da alegria com que se apresentava.

— Eu gostava de mostrar as pernas para os meninos e rodava com a bandeira a Deus não dar. Era um capeta como passista, mas quem me ensinou mesmo o ofício foi o Delegado. Muito exigente, ele não dançava com qualquer porta-bandeira. Só ele me aceitar já era uma glória. Em 1954, Dona Nininha ficou doente e não pôde mais sair com a bandeira. O pessoal da Gebara patrocinou e a escola fez um concurso para a escolha de sua substituta. Marta e Iraci eram as duas pastoras mais credenciadas. Quando vi Dona Nininha no júri, entretanto, dancei para ela, exatamente como minha tia dançava, dentro daquela tradição toda de rancho, discreta e atenciosa com o mestre-sala. Ganhei disparada o concurso. Nunca mais perdi a bandeira.

De sua primeira apresentação em desfile oficial, Neide guardou duas emoções: o nervosismo que a dominou desde as primeiras horas da manhã e a atropelada ida para o centro da cidade, local da apresentação.

— Era um frio na barriga de não acabar mais. Minha tia, a Nininha e toda diretoria procuravam me acalmar, mas quem diz que os nervos entravam no lugar. Naquele tempo a gente ia de bonde para o centro da cidade. Quando saí do morro, havia um engarrafamento grande no trânsito. Coisa normal de carnaval. Não aguentei esperar, fui de viação-canela mesmo. Na concentração da escola, levei a primeira bronca do Delegado, porque estava toda suada.

Ela explica, agora, as permanentes brigas em que eram flagrados ela e seu mestre-sala Delegado.

— Foram aí uns 15 anos que dançamos juntos, sempre num bate-boca infernal. Dançar eu sabia, mas quem me ensinou a malícia do jogo foi ele. É uma pessoa muito exigente e quer tudo certinho. Não admitia, por exemplo, que eu conversasse com pessoas de outras escolas. Eu não concordava e era aquele bate-boca. O titio (apelido de Delegado) é fogo; eu não faço por menos e lá vinha atrito em cima de atritos. Mas na hora de dançar, não! Aí nos entendíamos perfeitamente. No dia do julgamento podia escrever: nota dez para nós dois. Não batia no bico.

— Vou contar um segredo. O Delegado não gosta de amarrar o sapato da fantasia. Simpatia, conforto, sei lá. Em 68, um deles saiu do seu pé e foi parar longe. Fiquei evoluindo com a bandeira uns dez, minutos rodando, rodando e o povo começou a aplaudir, enquanto o Delegado colocava o sapato atrás de umas alegorias. No outro dia todos diziam: “a Neide deu um show fora de série, acabou com a dança”. Que show que nada, foi pura necessidade, porque eu só desfilo para a escola. Se me destacam, destacam, mas o que eu quero é ver a Mangueira vencer.

A dupla sonhada: mamão com açúcar em plena avenida

Há um mês sem sair de casa, 12 quilos abaixo de seu ideal, Neide Sant’Ana está se restabelecendo de uma intervenção cirúrgica feita em São Paulo. Na mesa de sua casa, a sandália de prata e um corte de popeline, presentes de uma amiga da Av. Vieira Souto. Pela terceira vez, em menos de uma hora, um vizinho bate à sua porta. Dessa vez pedem um pouco de pó de café, das outras duas um alicate e açúcar. Ela está morando numa vila operária, em São Cristóvão, e manda a filha atender a todos: “É como lá no morro, um ajuda o outro”.

— A sandália e o corte de fazenda ganhei, mas de uma amiga lá da Av. Vieira Souto. Ela é mangueirense doente e foi quem me levou para São Paulo onde operei. Está me mimando, pensando que não vou desfilar. Ela gosta de mim mas não conhece a raça. Já desfilei com oito meses de gravidez e minha filha taí, forte. Foi até engraçado. Tinham até preparado, escondido, substituta para mim. Eu tenho um primo que é serralheiro e ele fez um acolchoado macio para a base do mastro e ficou tudo bem. Eu fui lá, desfilei e tirei a nota dez, com barriga e tudo. Uma semana depois a menina nasceu.

De tristezas, Neide diz terem sido poucas. No início da década de 60, um dirigente da escola fez-lhe uma proposta estranha e ela jogou sobre ele a fantasia e os sapatos que fora buscar e foi embora, não desfilou.

— Não vi nem a Mangueira sair — porque não ia aguentar mesmo. Fechei o barraco, portas, janelas, tudo. Liguei o rádio e fiquei lá, chorando.

Quando Delgado encerrou sua carreira na Mangueira, Neide afirma ter recebido um golpe, mas para o desenlace já vinha se preparando. Ruim para ela, agora, é ver no carnaval a Ala dos Duques formada, sem a presença de seu marido, falecido há três anos.

— Era ele quem cuidava de minhas coisas, dentro e fora do samba. Agora, quando a Ala dos Duques passa por mim no carnaval, fecho os olhos. Uma coisa quebra dentro de mim.

Em Mangueira corre a notícia de que Delegado poderá deixar São Paulo — lá ele dirige, profissionalmente, a harmonia da Camisa Verde —, para se apresentar no enredo do cinquentenário da Estação Primeira. Neide está cética em relação a isso, mas fica empolgada com a idéia.

— Até já falei com Edson, meu costureiro desde a primeira fantasia de porta-bandeira, se o titio vier, não quero saber a quantas irão as despesas com a roupa. Já pensou, eu e o Delegado reunidos de novo?! Vai ser mamão-com-açucar na Avenida, mamão-com-açucar, irmão!*

  1. FIZ POR VOCÊ O QUE PUDE, samba de Cartola, com o autor, em disco “HISTÓRIA DAS ESCOLA DE SAMBA – MANGUEIRA”, Marcus Pereira MPC-4002 (1974); ↩︎
  2. O CADEG é o Mercado Municipal do Rio de Janeiro e um dos lugares mais importantes da cidade. Por lá, existem dezenas de lojas, que vão desde as conhecidas lojas de flores até as lojas de frutas, de alimentação e dezenas de outros produtos. <https://cadeg.com.br/> ↩︎
  3. Texto FIELMENTE transcrito do Jornal O GLOBO (RJ), n.16.154 de 4-1-78. Cultura, p.35. — Imagem JPEG 743 KB ↩︎
NEIDE DA ESTAÇÃO PRIMEIRA. A porta-bandeira em busca da sua nota 10
O GLOBO (RJ), 4-1-78. CULTURA, p.35

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