O canto maior de Jamelão
Jamelão

Compreender Jamelão é ultrapassar a fase em que o ouvinte gosta das proezas ou da exibição do cantor; é penetrar na densidade do que ele representa social e psicologicamente: um artista provindo dos estratos pobres da população num país em que não são dados ao homem negro (nem ao branco pobre) oportunidades de afirmação, superação, escolarização ou aplauso por parte da cultura hegemônica que é branca e de classe média, tisnada de estrangeirismos. Após a vitória da Mangueira Jamelão reaparece, agora, no “Canal livre”. É a chance de, nele, falar.

Há um mau humor crônico em Jamelão que lhe não retira, porém, como também ocorria com Nelson Cavaquinho, enorme simpatia. Transmite — sem o dizer — que ali está para cantar como quem cumpre um ofício e não para agradar, ficar em fundo, ser bonzinho, “um amor”, generoso com as platéias que “podem pagar”. Naquele “mau humor” há toda uma consciência social e política. As platéias que podem pagar não encontram nele um artista reverente e sim, um homem maduro, sofrimentos à mostra com recato, sem qualquer agrado formal. O artista chega, canta, dá seu recado, expressa a profundidade da dor ou do lamento de seu povo e se retira. Não se mostra ou oferece. No máximo aceita — e sem grandes efusões — ser descoberto.

O canto de Jamelão não se confunde com a sedução da pessoa, as doçuras robertianas, os agudos caubyanos ou os dengos caetanianos, formas respeitáveis e igualmente artísticas, porém que não são as de um homem do povo sério e sofrido que nunca encontrou facilidades ou benesses por parte do dominante e cuja sobrevivência respeitável e digna é fruto do muito trabalhar, só tendo a voz formidável (aos 72 anos) e enorme técnica de usá-la, aprimorada pela sensibilidade tão grande quanto enrustida, livre de exibições e promoções mercadológicas. Jamelão é um deus “ex-machina”.

Tais características o tornam um intérprete notável grande parte do que de maneira mais visível e socialmente simpática, com toda justiça, é tributado a Clementina de Jesus, deveria, no naipe masculino, ser reconhecido em Jamelão.

Ele é a grande voz lamentosa dos segmentos tristes da população, dos marginalizados sociais ou existenciais, dos morros, cabarés, casas de dança, bailes populares, Estes compreendem (porque sentem) a profundidade expressiva de Jamelão e sua solidariedade.

Em toda a vitória da Mangueira, tão merecida, vendo as festas e homenagens fiquei a lembrar-me de Jamelão e destas idéias a seu respeito, muito antigas em minha sensibilidade1.

  1. TÁVOLA, Arthur da. “O canto maior de Jamelão”. O GLOBO (RJ) n.19.099, 2-3-86 REVISTA DA TV, p.15. ↩︎