Rainha Quelé
CLEMENTINA
Foto: Tiago Scorza

Clementina de Jesus da Silva (Valença, 7 de fevereiro de 1901 — Rio de Janeiro, 19 de julho de 1987). Sambista fluminense, dona de uma voz inconfundível, potente e ancestral, Clementina de Jesus foi a síntese do Brasil, expressão de um país de forte herança africana e de singular formação religiosa. Conhecida como Rainha Quelé, carregava consigo os banzos de seus ancestrais, transformados em cantos, encantos e segredos nos jongos, no partido-alto e nas curimbas que cantava. Diferentemente das conhecidas e famosas “divas do rádio” que brilharam na primeira metade do século XX, a cantora negra tinha um timbre de voz grave, mas com grande extensão e um repertório de músicas afro-brasileiras tradicionais.1

PREFÁCIO

Hermínio Bello de Carvalho

E um dia a vida me preparou mais uma boa surpresa: minha casa foi invadida por gente muito jovem, que veio conhecer o velhote que “descobriu” Clementina de Jesus. Expliquei de saída que nunca na minha vida descobri nada-nadíssima. Apenas exerço a arte de prestar atenção, com olhos e ouvidos atentos às possíveis singularidades que surjam em meu caminho. E Clementina de Jesus foi colocada, através de sua arte primitiva, nesse nicho onde ficam aqueles privilegiados que nasceram para nos fazer entender que a vida, enfim, não é só isso que se vê. Mãe Clementina é para mim o que foi Chico Antônio para Mário de Andrade e Pastora Maria Pavón Cruz – La Niña de Los Peines – para Federico García Lorca. Enfim, sou o que os técnicos em pesquisa chamam de “fonte primária” e, realmente, em outros encontros, fui despejando o que minha memória ainda guardava, tendo o cuidado de indicar outras fontes que fizeram parte da vida de Quelé. Isso me dá a chance de reiterar que não sou um pesquisador, mas um modesto escarafunchador de gavetas por onde a história por vezes se esconde, fugindo de lupas curiosas.

E passado um bom tempo, eis que o livro ganha seu formato definitivo. Definitivo, não: há sempre um fato novo que se escondeu nas frinchas do tempo, esquivando-se dos pesquisadores até que um dia dê as caras trazendo coisas novidadeiras. E um dia sai das sombras e nos traz informações que morreriam ao longo do tempo, ou ganha versões tão fantasiosas quanto discutíveis. O pedido do prefácio não poderia ser atendido de forma convencional: já se passou meio século de meu encontro com Mãe Quelé na velha Taberna da Glória, e minha memória está craquelada, com buracos imensos. Sugeri, então, já que não me deram o direito da recusa, usar do seguinte expediente: eles me mandariam uma cópia do texto que fiz para o primeiro LP que produzi para Clementina, pois as informações então colhidas para a contracapa do LP tinham um frescor que o tempo não apagaria. Acoplado a este prefácio, o trabalho ganharia mais densidade.

Mas pensei outras vezes, e achei que seria um expediente que exalaria o odor de uma possível preguiça ou má vontade. As informações que forneci na contracapa do LP aparecerão fatalmente na biografia.

O trabalho, vê-se logo, exigiu uma pesquisa intensa de seus autores, e irá fatalmente corrigir eventuais enganos que outros estudiosos tenham cometido. Os jovens biógrafos fugiram dos lugares-comuns e abordaram o real significado de Quelé para a nossa cultura, escavacaram suas raízes africanas e também a importantíssima questão da oralidade: tudo que aprendeu com a mãe já era a herança musical que a ela foi passada por seus antepassados. Canções, portanto, centenárias. E meu trabalho era registrar aqueles tesouros. Respondo sempre, repito, que nunca descobri coisa alguma, apenas exercia a arte de prestar atenção. E, no caso de Quelé, com atração redobrada.

A bela e bem-cuidada biografia escrita por Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz honra a memória de Clementina de Jesus e elucida fatos da vida de Clementina que ampliarão sua importância como artista única e pessoa especialíssima.

Que honra ter sido convidado a fazer o prefácio do livro dessa iluminada garotada!2

  1. Coelho, Heron (org) Rainha Quelé – Clementina de Jesus. Rio de Janeiro: Secretaria de Cultura de Valença, 2001. ↩︎
  2. CARVALHO, Hermínio Bello de. Prefácio do livro: “Quelé, a voz da cor : biografia de Clementina de Jesus” /
    Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz, 2017 – 2. ed. – Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2017. ↩︎