NA Caixa D’Agua, ponto de jogo de ronda bem no meio do morro, foram as primeiras lições de samba e de vida. Os primeiros cortes no baralho.

Pouco mais acima ficava a tendinha do seu Mané-Mané, tio do Geraldo Pereira — uma presença assidua e festejada, tanto ele como Nélson Cavaquinho. Ali, os primeiros tragos.

Foi um tempo sem pistola e pistoleiros. Valentia era na mão, corpo a corpo. Valente era na perna. O carteado cedia a vez e as rodas de batucada alegravam a Caixa D’Agua: malandro “plantado” no meio, pés juntinhos e a perna comendo em volta, ao estilo de cada um — “banda de frente”, “banda de lado”, “dourado” … o ritmo marcado só com palmas e os refrões curtos, repetidos em uníssono:
ê tumba moleque tumba
ê tomba que é tombador…

— Quem caísse no chão com o “dourado”, é porque o tombador sabia “pegar”; Marcelino, por exemplo, não foi apenas o grande mestre-sala, foi principalmente um grande “perna”, vai recordando Oswaldo Vitalino de Oliveira, o Padeirinho da Mangueira, nascido no dia 5 de março na Rua das Laranjeiras, há 53 anos.

A mudança para o morro foi em 1939, aos 12 anos de idade. A partir daí, Padeirinho começa a construir o prestígio e a fama que hoje desfruta em toda essa região do Morro da Mangueira (na realidade, o conjunto dos morros da Candelária, Santo Antônio, Vacaria, Xalé e Pindura Saia).

Do pai, José Vitalino de Oliveira, cantador de calango e padeiro de profissão, o filho herda talento para versar e o apelido. Além de um desembaraço enorme, uma incrível intimidade com todos os instrumentos de percussão (pandeirista dos bons foi o seu José). E não deve ser, portanto, obra do acaso a presença atual de Bira, filho mais velho de Padeirinho, na direção de bateria da Escola Estação Primeira de Mangueira.

Só sabe de samba quem curte Padeirinho - PASQUIM (RJ) n.637, 10 a 17-9-81, p.19.

Antes de compor, Padeirinho (“Padeiro” para os amigos) foi versador de escola de samba, junto com Jorge Zagaia, também ele versador competente e cantador de calango (assim uma espécie de forró acariocado, mais ou menos isso aí…). Ainda meninos, Padeiro e Zagaia gozavam de boa reputação entre os partideiros, seja criando versos de improviso, seja nas firulas do “miudinho”, como se nomeava a dança do partido alto, sempre iniciada quando o homem tirava a mulher — ou vice-versa — com aquela reverência da umbigada.

A primeira escola de samba a que Padeirinho se ligou foi a Unidos de Mangueira — irmã pobre, no mesmo morro, da Estação Primeira, esta desfilando na Rio Branco e aquela na Praça 11.

Só em 1947, Padeirinho chegou à agremiação do mestre Cartola, pelas mãos de Jorge “Pelado”, companheiro mais velho, mais maduro na idade e nas vivências do samba.

Cartola — presidente e fundador da ala de compositores — aprovou o ingresso do jovem e já afamado versador Padeirinho da Mangueira, cuja inspiração corria as ladeiras e ganhava as tendinhas do morro. Com certeza não foi fácil nem cômodo, para o Padeirinho, jogar em time de mestres, fazer samba ao lado de Cartola e Carlos Cachaça, Chiquinho Modesto, Alfredo Português (padrasto e parceiro do Nélson Sargento), Babaú, Xangô, Sinhozinho, Pelado, Malvadeza, Prego, Zagaia e outros gênios da criação popular.

De qualquer maneira, 1947 parece ter sido o ano mais importante na vida do homem e do artista Oswaldo Vitalino de Oliveira. Digo isso porque naquele ano ele se casou duas vezes. Duas uniões muito bem sucedidas: com a Escola de Samba Estação Primeira e com Clemilda, a “Mida”, até hoje companheira paciente e dedicada (Padeiro tem 12 filhos e 12 netos).

Com “O Grande Presidente”, em 1952, Padeirinho venceu pela primeira vez o concurso de samba-enredo da Mangueira: uma exaltação a Getúlio Vargas, um retrato cheio de amor, que até hoje comove, arranca aplauso de qualquer platéia. Padeirinho continuou concorrendo sempre, mas só em 72, com “Rio, Carnaval dos Carnavais”, voltou a vencer.

Diz ele: “Com essa vitória pude perceber que tudo estava sendo modificado. Quando a escolha de um samba-enredo vira comércio, quando começam a apelar para a ignorância, se a gente é digno tem que se afastar, cair fora. Foi o que eu fiz. Existem outras maneiras de fazer música popular e lutar por ela. Continuo compondo, guardando minhas composições e tentando aproveitá-las em gravações. Não sou descansado, parado. Não fico esperando o sucesso. Corro atrás, ando a cidade inteira. Quem não anda atrás fica no ultimato. Agora então, sem beber, posso divulgar melhor o meu trabalho”.

Toda a obra do Padeirinho, mais de 300 sambas “na ponta da língua”, está enraizada na cultura do seu povo, impregnada do clima da sua juventude. Conheço bem poucos compositores que têm sabido refletir em sua arte, com tanta fidelidade e contundência, a sua própria vida.

Em grande parte de suas criações há influências nítidas de Geraldo Pereira e Nelson Cavaquinho. E ainda do cantor Vassourinha — um fora-de-série, esplêndido intérprete de sambas, falecido precocemente e dono de uma divisão rítmica bem pessoal, exclusiva, semelhante a que Padeiro usa para mostrar seu trabalho.

Sincopada no ritmo, extremamente concisa e original na linguagem melódica, a música do Padeirinho fala exclusivamente do seu próprio mundo, de um tempo que ele viveu e vive. A linguagem do morro, a tristeza e os anseios da gente pobre que circunda a cidade grande, as conversas do cais do porto, onde Padeiro conseguiu, em 1940, o primeiro emprego: são essas as fontes onde ele bebe.

Vale lembrar o cais do porto dos anos 40 como um reduto sambistas, do Cabuçu ou de Madureira, Mangueira ou Caxias. Depois do trabalho na orla, eram inevitáveis as rodas de samba, quase sempre na Praça da Harmonia. E Santo Cristo. E Saúde. E por aí tudo. O trabalho no cais foi um tempo fértil em criação. E importante para a formação musical. Só comparável aos dias de hoje, quando Padeirinho (dois anos a seco, após trinta de birita) consegue trabalhar com mais fôlego, participar de shows, marcar ponto infalível no TRE e ainda fazer um samba novo por semana, sozinho ou com os parceiros mais constantes — Quincas do Cavaco, Ari Guarda, Nilton Russo, Moacir Silva, Nelson Pechincha ou José Garcia.

Estas duas qualidades são as mais características da música do Padeirinho, tornando-a bastante difererciada, bem pessoal: sua habilidade e inventiva excepcionais no uso das expressões de gíria; o cunho social que, de deliberadamente ou não, vem expresso em muitas de suas mais conhecidas composições.

Dos seus sambas de gíria. — “Se manda, Mané”, “Fofoca no Morro”, “Mora no Assunto”, “Deixa de Moda” (este muito confundido com as criações do Geraldo Pereira) e dezenas de outros mais — sobressai uma preciosidade da música popular brasileira chamada “Linguagem de Morro”. Numa dessas explosões de criatividade, Padeirinho não apenas explora à exaustão o valor sonoro das palavras como, num “abuso” de originalidade, traduz a gíria para os leigos.

Samba de parceria com Ferreira dos Santos, mulher do Jamelão, o lançador em disco.

A uma repórter que, após ouvir suas músicas, identificava preocupações sociais, Padeirinho saiu-se com esta:

— Você acha que tem mesmo? Pois quando eu fiz “Favela” esse tipo de preocupação nem passou pela minha cabeça. Apenas eu vinha de trem, observando, e me ocorreu que eu devia dizer num samba como o pobre, sem casa para morar, vai ocupando aquele mundão de terra.”

“Favela”, um samba brilhante, explora o aspecto apenas existencial do problema da moradia. Padeirinho, como em quase todas as suas letras, fala da luta pela sobrevivência. Sem protestos. Nem choramingas. Aqui ele retrata, com autenticidade, a ocupação do espaço, a favela nascendo.

Com quase 40 anos de trabalho — na música e fora dela — Padeirinho não tem obtido mais do que uns míseros seis mil cruzeiros em direito autoral ao fim de cada trimestre.

“E isto porque”, como ele próprio disse, “agora com o ECAD as coisas estão muito melhores pro meu lado”.

E assim, numa visão apressada eis esse grande artista do povo chamado Oswaldo Vitalino de Oliveira, em cujo convívio me enriqueço há bem uns vinte anos. De ânimo e esperança — posso testemunhar — lhe têm sido essas coisas todas do trabalho e do amor. Ao samba, que tanto lhe deve, dedica a maior gratidão. Não fosse a necessidade de registrar com mais eficiência suas músicas, de compor mais e melhor, até hoje continuaria sem saber ler e escrever. Nunca entrou em uma escola. Aprendeu tudo no mundo — bom aluno que sempre foi.

A outra característica marcante nos sambas do Padeirinho da Mangueira: o humor, a um só tempo fixo e simples. Do seu cotidiano sofrido nunca deixou de extrair arte. E as situações mais embaraçosas ele tem transformado em samba, com tiradas cheias de espírito. Como aquele que está nas rádios, na voz da Zezé Mota (Malandro pra ser malandro/ tem que ter capacidade/ se tiver mulher bonita/ tem que andar “em atividade”/ se não uns e outros tomam/ na maior tranqüilidade…)

Franco Paulino1

  1. PAULINO, Franco. “Só sabe de samba quem curte Padeirinho”. PASQUIM (RJ) 10 a 17-9-81, p.19. ↩︎